Diferentes e não desiguais

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O que são classes sociais?
Idealizado e escrito por Equipo Plantel
Ilustrações: Joan Negrescolor
Editora: Boitatá
52 páginas

as muleAs mulheres e os homens
Idealizado e escrito por Equipo Plantel
Ilustrações: Luci Gutiérrez
Editora: Boitatá
52 páginas

A série “Livros para o amanhã” acaba de ser premiada na última Feira do Livro em Bolonha, categoria não-ficção. Publicada originalmente pela espanhola La Gaya Ciencia no período de transição pós-ditadura franquista, foi retomada pela editora Media Vaca e chegou ao Brasil estreando o selo infantil da Boitempo, o Boitatá.

Os dois primeiros volumes foram publicados em 2015 – A democracia pode ser assim e A ditadura é assim. Os dois novos títulos recém lançados são O que são classes sociais? e As mulheres e os homens.

Seguindo a linha editorial que caracteriza a série, estes dois volumes conversam diretamente com o pequeno leitor sobre temas extremamente atuais na conjuntura política nacional. Em tempos de discursos inflamados, argumentos superficiais e discussão polarizada, é frequente o questionamento das crianças acerca dos acontecimentos políticos noticiados pela grande mídia, presentes também nas conversas familiares e no ambiente escolar.

Justamente por terem sido publicados originalmente há mais de 40 anos num período de reabertura política, os livros preservam um posicionamento ideológico comprometido, sobretudo, com os direitos humanos universais e podem disparar conversas mais aprofundadas com as crianças e os jovens sobre temas tão caros à nossa recente e frágil democracia.

A edição brasileira conta com acréscimos e adaptações importantes que complementam de modo mais específico o tratamento dos temas principais de cada volume, trazendo exemplos do contexto nacional. No caso do livro A ditadura é assim foram incluídas imagens de ditadores brasileiros na galeria de políticos mundiais apresentada nas guardas do livro. Charges de cartunistas como Laerte e Quino também foram acrescentadas nas páginas finais, ao lado de legendas que esclarecem algum episódio marcadamente brasileiro relacionado ao tema do livro.

No caso do volume O que são classes sociais?, a charge de Jarbas Domingos faz menção aos 125 anos da proibição do trabalho infantil no Brasil. Desse modo, o leitor pode refletir sobre assuntos que envolvem as relações humanas de poder ao redor do mundo, considerando sempre exemplos da realidade de nosso país, a partir do olhar de importantes artistas. Além das charges, textos informativos complementares assinados por especialistas no assunto acompanham todos os volumes, assim como algumas questões provocadoras sugeridas após a leitura. Embora essas perguntas finais num primeiro momento lembrem certo “didatismo” que não combina muito com o aspecto mais transgressor das ilustrações e do projeto gráfico, podem ser úteis em situações pontuais de mediação porque respeitam o livre pensar e a propensão ao questionamento reflexivo presentes nos textos.

O que são classes sociais?

Conceitos caros à história da humanidade como capitalismo, socialismo e comunismo, tem sido citados de forma quase leviana e muitas vezes como “xingamento” não apenas por pessoas que ocupam cargos políticos em nosso país, como também pela grande mídia a serviço de uma estratégica desinformação. Recuperar a origem histórica destes conceitos e inevitavelmente de outros a eles relacionados, como trabalho, propriedade, classe social e luta de classes não é tarefa fácil, nem rápida. Exige disposição, tempo e sobretudo intenção e posicionamento.

Os volumes da série “Livros para o amanhã” certamente tem uma importante contribuição nesse sentido porque tratam de alguns desses conceitos de forma acessível aos leitores iniciantes, sem banalizar a complexidade do conteúdo. Longe de qualquer viés doutrinário, o que estes livros propõem é uma discussão ampla, a partir de um ponto de vista específico e nem por isso, menos plural: daqueles que prezam o respeito aos direitos humanos universais, resguardados por lei em declarações internacionais e constituições federais, acordados diplomaticamente entre várias nações e defendidos diariamente por inúmeros movimentos sociais legitimamente constituídos.

No livro O que são classes sociais?, o valor da igualdade dispara a reflexão sobre a formação das classes sociais, aqui tratadas como “classe alta”, “classe média” e “classe trabalhadora”. Logo na primeira página, temos: “Todas as pessoas são iguais. Mas existem coisas que as tornam desiguais: a força, o poder, o dinheiro e a cultura.” Cada uma destas quatro “coisas” será devidamente explicada ao longo das páginas que se seguem, com texto direto, sem margem para ambiguidades, ainda que abrindo para grandes angulares. Por exemplo: “Porque, desde sempre, alguns grupos se aproveitaram de outros, dominando-os pela força. E, à força, fizeram esses outros trabalhar, pensar e inventar para eles. Por isso, uns são ricos e outros são pobres. Uns dominam, outros são dominados.” Neste trecho o elemento em discussão, gerador da desigualdade, é o conceito de “força”, mas vários outros conceitos se colocam em paralelo: exploração, dominação, ricos e pobres.

Como num grande mapa conceitual, o texto, embora mantenha certa linearidade narrativa, desponta constelações para as quais o leitor pode se desviar, se assim desejar. Alia-se a isso a riqueza da linguagem visual que, assim como o texto, comunica-se muito rapidamente com o leitor. Há ilustrações panorâmicas que concentram em uma única imagem diferentes momentos e atores históricos; ilustrações caricaturais, quando é necessário mostrar os exageros e os abusos de poder; uso de recursos publicitários, quando o que se pretende é condensar em uma imagem múltiplas informações e há, ainda, algumas ilustrações mais poéticas, em meio a um universo predominantemente referencial, que convidam a uma reflexão metafórica mais demorada. Neste volume, as ilustrações são assinadas pelo jovem espanhol Joan Negrescolor que, não por acaso, também trabalha para agências de publicidade, produz animações e cartazes.

Uma ressalva editorial importante se encontra no texto final deste volume, “As classes sociais ontem e hoje”: para essa nova edição, foram atualizadas as ilustrações, sobretudo para retratar o capitalista e o operário. Segundo o texto, assinado pela equipe editorial, “há algum tempo, todo mundo sabia que um homem de terno e fumando charuto representava um tipo característico da classe alta, o capitalista. Da mesma forma, o operário vestido com seu uniforme de trabalho era inconfundível. Hoje, embora alguns homens de negócios usem terno e fumem charuto, de modo geral, todas as pessoas se vestem de um jeito parecido.” Observando as ilustrações, é possível notar a qual classe social pertencem as pessoas retratadas nas imagens sobretudo pela posição que ocupam na cena – mais ou menos subalterna – muito mais do que pela roupa que vestem. E este é mais um aspecto sintomático que pode tranquilamente ser problematizado com os pequenos leitores, frequentemente tão atentos aos detalhes das ilustrações.

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Como a maioria dos volumes desta série, O que são classes sociais? termina com uma provocação que certamente levaria a um outro, ainda inexistente volume específico sobre luta de classes: “Enquanto existirem classes sociais… haverá luta de classes. Porque os ricos querem continuar tendo seus privilégios e os pobres querem que todos tenham os mesmos direitos.” É fato que as perguntas sugeridas nas páginas finais do livro não darão conta de abarcar os variados questionamentos que a leitura pode disparar. Trata-se daquele tipo de livro que se sabe positivamente insuficiente e que pode despertar o desejo e a necessidade de novas leituras e muitas, muitas conversas.

As mulheres e os homens

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O último volume da série é igualmente atual não apenas no contexto nacional, mas também de muitos países europeus e latino-americanos que vem sofrendo golpes duros promovidos por grupos de extrema direita, cada vez com mais poder. Episódios políticos recentes provocaram a indignação de boa parte da população brasileira por propagarem valores extremamente conservadores e preconceituosos em espaços públicos, originalmente destinados à defesa dos direitos civis, plurais por natureza e princípio.

Machismo, homofobia e preconceito racial resumem parte deste triste cenário. Diante de tamanho retrocesso, a parcela de contribuição da leitura é muito menor do que a complexidade de tal demanda social. Seria ingênuo e simplista entender a leitura como espaço redentor em situações de extrema injustiça. Apesar disso, todo contraponto a este discurso retrógrado tem seu mérito e, nesse sentido, mais uma vez a coleção “Livros para o amanhã” sai na frente. Trazer à tona a discussão sobre gênero com crianças e jovens, numa perspectiva que privilegia a diversidade e a igualdade de direitos, como se vê em As mulheres e os homens, é fazer valer o princípio ético da edição, como ressalta Constantino Bértolo: “os livros do futuro não querem ser instrumentos das elites, mas ferramenta para a igualdade e a solidariedade”1.

Um possível estranhamento já se dá na ilustração da capa: quem é o homem e quem é a mulher? O que, afinal, os define como tal? Logo na primeira página, uma pista para a busca de novas perguntas, ao invés de poucas respostas: “As mulheres e os homens são muito semelhantes, embora pareçam muito diferentes.” O que alguns querem que seja, o que parece ser e o que não parece, mas é, são alguns ideias que acompanham o texto e ajudam a problematizar ainda mais a questão, como se lê no seguinte trecho: “Existem mulheres ineligentes e homens tolos. Existem mulheres corajosas e homens covardes. Assim como existem homens importantes, inteligentes, corajosos. Pois a inteligência, o trabalho, a coragem de uma pessoa não têm nada a ver com ser homem ou mulher.”

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A “natureza feminina” e a “natureza masculina” são tratadas aqui em sua complexidade, elevando a importância de uma questão via de regra reduzida aos determinismos biológico ou religioso quando tratada com leitores iniciantes. Impossível não lembrar da máxima de Simone de Beauvoir, em O segundo sexo (1949): “ninguém nasce mulher, torna-se mulher”.

Embora o feminismo como movimento histórico não seja diretamente abordado no livro, os ideais feministas de igualdade dentro da diversidade estão presentes, assim como conceitos correlacionados, como dominação e exploração econômica. Tudo isso, expresso na subjetividade filosófica (mas não pedante) do texto e principalmente na ironia das ilustrações, assinadas, aliás, por uma mulher, a jovem espanhola Luci Gutiérrez.

Algumas páginas adiante nos deparamos com a imagem de Adão e Eva, quase gêmeos, com ares de John Lennon e Yoko Ono, bem anos 60/70, como confirma o teor do texto logo abaixo da imagem: “Na verdade, as mulheres e os homens são iguais em quase tudo. A única coisa que têm de diferente é o sexo. O sexo é importante porque serve para as mulheres e os homens terem prazer, se divertirem, se amarem e gerarem filhos. Mas é só isso: o sexo não faz de ninguém uma pessoa melhor ou pior.”

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Em pleno século XXI deveria ser para lá de natural encontrarmos livros para crianças e jovens tratando a relação sexual para além do seu aspecto de procriação da espécie. Sabemos, no entanto, que não é bem assim que se comporta grande parcela do mercado editorial. Associar a relação sexual ao prazer e à diversão já seria um ponto de destaque para o livro, mas isso ganha ainda mais realce quando olhamos as ilustrações que acompanham esse trecho do texto: cenas rápidas emolduradas em janelas mostram diversos casais – homem e mulher, homem e homem, mulher e mulher – divertindo-se e trocando carícias.

A diferença na educação dos meninos e das meninas é outro aspecto tratado no livro, a partir de inúmeros exemplos próximos ao universo das crianças, como o uso das expressões “chefe de família” e “dona de casa” que revelam ideias preconceituosas sobre o papel social dos homens e das mulheres. Numa abordagem crescente, que parte do núcleo familiar tradicional e se expande para o meio social, chegando às diferenças entre homens e mulheres no mercado de trabalho, o texto oferece uma visão panorâmica da desigualdade social entre os gêneros. Sente-se falta de um aprofundamento aqui e outro ali que talvez pudessem ter sido considerados nas poucas adaptações feitas para a edição brasileira da série – o feminismo como contraponto que surge a partir da voz da mulher, por exemplo, poderia ter algum lugar ao longo do livro, assim como movimentos sociais encabeçados por mulheres.

As possíveis perguntas que se faz o leitor ao se deparar com a ilustração da capa – mas, afinal, quem é o homem e quem é a mulher? O que os define como tal? – depois de passar por uma série de problematizações que certamente lhe provocam outras perguntas, encontra uma resposta que apesar de afirmativa, não fecha os pontos abertos ao longo do livro: “Nem os homens foram feitos para mandar, nem as mulheres nasceram para obedecer. Porque as mulheres e os homens são pessoas iguais com sexo diferente.”

A igualdade na diferença é a grande questão que o livro coloca. O texto complementar assinado por Mirla Cisne, militante feminista, ajuda a identificar claramente o posicionamento ideológico que embasa não apenas este volume, mas toda a série: “Meninos e meninas são diferentes e não desiguais. Nenhuma diferença deve fazer com que alguem se sinta superior ou inferior. Cada pessoa tem sua beleza. Podemos aprender muito quando respeitamos e convivemos bem com a diversidade.”

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  • Cristiane Fernandes Tavares

    É graduada em Comunicação Social pela Faculdade Cásper Líbero e Mestre em Literatura e Crítica Literária pela PUC-SP. Publicou artigos sobre leitura e literatura em revistas acadêmicas como a Comunicação & Educação – USP/ECA e é autora de Quintais, Editora Salesiana, 2007. Realizou assessorias, cursos e oficinas pelo Centro de Estudos da Escola da Vila. Integrou e coordenou a equipe de formadores de professores da rede municipal de São Caetano do Sul. É colaboradora do Movimenta Projetos em Educação e da Comunidade Educativa CEDAC e coordena projetos na Associação Crescer Sempre, em parceria com escolas estaduais da comunidade de Paraisópolis. É resenhista no Caderno Literatura da revista Brasileiros.

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