Gianni Rodari, um defensor da vida – 3

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Em La Góndola Fantasma, Rodari transporta o leitor ao século XVII, a Veneza, para viver toda uma aventura para resgatar o filho de um califa árabe que se encontra encarcerado. Os protagonistas são aqueles personagens tirados da comédia dell’arte: Arlequim e Polichinelo que se misturam em uma aventura com piratas e mercadores que têm relações comerciais com o oriente. Neste caso é o referente histórico dessa Veneza de finais do renascimento, com gôndolas, canais, barcos que transportam mercadorias do oriente, o que serve de cenário para um relato misto de gênero policial com cenas que parecem retiradas das mil e uma noites. É possivelmente uma das poucas novelas em que Rodari se libera de sua necessidade de questionar a realidade dos despossuídos e desenvolve uma história brincalhona, picaresca, popular, muito na corrente da comédia dell’arte italiana.

Em El planeta de los árboles de navidad, estamos mais próximos do conto de ficção cientifica, em que seu protagonista, Marco, outra criança de nove anos, viaja a um planeta desconhecido montado em um cavalinho azul de brinquedo que ganhou de seu avô no dia de seu aniversário. Neste planeta sempre é Natal, as coisas e as pessoas mudam de nome permanentemente, as pessoas andam de pijama, os táxis são cavalo de brinquedo, as máquinas e os robôs se encarregam de todos os ofícios, não existe o verbo roubar, pois tudo pertence a todos, vendem-se as coisas de graça, não há autoridade, as calçadas são móveis e há um bazar quebratudo onde as crianças e os adultos podem ir para quebrar tudo cada vez que têm raiva.

É realmente um mundo feito sob medida para muitos dos desejos das crianças; é o mesmo recurso de O mágico de Oz, de Lyman F. Baum, de Mio, mi pequeño mio, de Astrid Lindgren, ou A história sem fim de Michael Ende, nos quais o protagonista se transporta e passa a viver em um mundo imaginário e fantástico. Um mundo maravilhoso em que se sente feliz e que consegue apagar por um tempo a miséria ou pequenez de sua vida real. Em El planeta de los árboles de navidad Marco não se sente bem. Desconcerta-o que tudo resulta efêmero, ali tudo muda de nome permanentemente, as coisas tentam existir, mas não conseguem. Desesperadamente busca a maneira de regressar a sua terra, a sua realidade. De novo essa tensão dialética entre realidade e fantasia.

Finalmente poderíamos agrupar nesta aproximação ao fantástico outro tipo de contos curtos, humorísticos, em que talvez por não ter que submeter-se a uma estrutura novelística, Rodari dá rédea solta à sua imaginação criadora, e que estão mais próximos da tradição fabulística. É a pura fábula liberada de sua intenção moralizadora tradicional, em que tudo é possível, em que através do humor, da fantasia e do jogo permanente com a linguagem, se libera a imaginação a tal ponto que corre por lugares insuspeitos. Em muitos destes contos Rodari retoma as fábulas e os contos populares mais tradicionais e os transgride, os parodia, os mescla, com o gênio do alquimista, a quem para a mistura serve o mais antigo e o mais moderno.

Mas também nestes contos surge o Rodari que se nutriu apaixonadamente em seus anos de juventude do surrealismo, e o põe em prática levando-o até suas máximas consequências. Sob este principio de liberar a linguagem da sintaxe convencional, entra em sua criação em uma superposição de imagens, que responde mais a associações livres, à liberação do inconsciente que se filtra através da linguagem criando imagens absurdas, surreais, quase oníricas, e digo quase porque a maestria de Rodari é seus contos mais fantásticos e mais absurdos, é precisamente que não são gratuitos, não é a transcrição de um sonho, nem o deixar livremente que a imaginação – e por fim a linguagem – corram livres por onde queiram, mas que deliberadamente, com uma vontade criativa técnica, constrói umas histórias humorísticas, explosivas, que produzem no leitor, além de um sorriso refrescante, a sensação de estar assistindo a situações totalmente inéditas que nos põem em um plano diferente da realidade e da consciência criativa. E talvez aí esteja seu maior legado.

Depois de Rodari a literatura para crianças se sentiu imensamente mais livre, mais criadora, se liberou por fim de todos os “deveres ser” aos quais a tinham submetido tanto a pedagogia, como as leis da tradição. E é quando Rodari consegue ser mais revolucionário, muito mais que em seus livros de denúncia social. Não somente revoluciona os usos convencionais da linguagem, como fiel discípulo das vanguardas europeias, como seguidor e estudioso dos surrealistas, mas que o faz dirigindo-se à criança, com uma clara consciência do receptor. Está piscando os olhos permanentemente à criança leitora, mas já não para mostrar-lhe as injustiças que se cometem com ela, mas para mostrar-lhe um mundo em que todas as alterações são possíveis. Nesse mundo existe um país como o des-frente, onde existem os desapontadores que servem para fazer crescer os lápis quando estão desgastados, ou um tio elegante que por um pequeno erro linguístico se converte em elefante, ou o planeta Bi onde a ciência é vendida e consumida em garrafas.

É o caso de Cuentos escritos a máquina (Alfaguara, Madrid, 1978) Fábulas por telefone (Editora WMF Martins Fontes), e Cuentos para jugar, (Alfaguara, Madrid, 1981).

Fábulas por telefone

Nos Cuentos escritos a máquina há uma deliberada mistura dos mitos tradicionais, com os mitos da sociedade moderna renovando-os, atualizando-os.

Utiliza muito a linguagem dos meios de comunicação de massa, umas vezes como se estivesse dando uma notícia, narrando uma partida de futebol, ou contando o conto da Cinderela protagonizado pela filha de um presidente de uma multinacional. São imagens dos meios, imbricadas com estruturas e personagens dos contos tradicionais: uma partida de futebol onde aparece Branca de Neve e Cinderela perde um sapato; um empresário que pergunta ao espelho de seu carro: – Espelhinho, espelhinho quem tem carro mais bonito –; ou o jovem que pede a mão, não ao Rei, mas ao presidente da Associação de Futebol Barbarano; o campo de futebol se enche de bruxas, ogros, diabos, geniozinhos, madrastas, meias irmãs, princesas, lâmpadas remotas, cavalos falantes, guerreiros, bandidos, músicos de Bremen, … mas também chegam Mickey, Superman, Nembo Kid, Barba Azul e Pequeno Polegar… (pag. 68) Finalmente aparece o flautista de Hammelin tocando uma peça de J. Sebastian Bach.

Os relatos de Cuentos escritos a máquina têm muito de roteiros cinematográficos contados com a característica repentina inerente à oralidade. Uma maneira mito rápida de contar, com a arte do improvisador popular, através de múltiplas ações, de peripécias dos personagens e de uma narrativa visual que retoma os tempos e as imagens dos meios de comunicação de massa. É a linguagem rápida da televisão mesclada com a agilidade do cronista da imprensa escrita e com a liberdade de misturar a tradição com as situações mais contemporâneas. Dessa mescla feita pelo mago Rodari, surgem histórias, situações humorísticas e sarcásticas; uma aguda crítica à sociedade de consumo, ao mundo das multinacionais, dos empresários, dos grêmios, dos poderosos, ridicularizando-os através de imagens caricaturescas.

Em Fábulas por telefone, por sua vez, estão dirigidos a leitores menores, são curtos, fantasiosos e cotidianos. São os contos que um pai muito ocupado conta a sua filha todas as noites, por telefone.

“Era uma vez…

..o senhor Bianchi. Sua profissão de caixeiro viajante o obrigava a viajar durante seis dias por semana, percorrendo toda a Itália, o Leste, o Oeste, o Sul, o Norte e o Centro, vendendo produtos medicinais. No sábado regressava a sua casa e na segunda-feira pela manhã tornava a partir. Mas antes que ele se pusesse em movimento sua filha lhe recordava:

– Já sabes papai: um conto cada noite –

… Este livro é precisamente o dos contos do senhor Bianchi. Verão que todos são um pouquinho curtos: claro, o senhor Bianchi tinha que pagar as ligações de seu bolso e por isso não podia fazer chamadas muito longas. Uma vez ou outra, quando havia realizado um bom negócio, se permitia uns minutos a mais. Me contaram que quando o senhor Bianchi telefonava para Varese, as senhoritas da telefônica suspendiam todas as chamadas para escutar seus contos. Claro! Alguns são tão bonitos…

Neste livro encontramos materializados muitos dos exercícios e sugestões propostas na Gramática da Fantasia.

E finalmente, Histórias para brincar, nos quais Rodari transforma o leitor em participante ativo permitindo que escolha o final que lhe pareça mais interessante. Ao final do livro, lhe contará qual ele mesmo escolheu. Neste livro Rodari materializa sua convicção de que a literatura infantil é ação. Ação linguística, ação criadora. A criança já não é mais um consumidor da cultura, mas um criador. Pode participar ativamente da criação.

Histórias para brincar

Rodari defendia a existência de uma literatura infantil desde sua própria conquista no tempo, e desde a valorização da criança, como receptora e criadora. A literatura infantil foi ganhando um terreno que lhe havia sido vedado e o faz logo em seguida da descoberta da criança como um sujeito cultural. Rodari nos recorda que a criança é uma descoberta recente, diz:

“Nas sociedades primitivas era um filhote que adquiria um nome somente ao alcançar a adolescência, depois de cerimônias de iniciação e inclusive por meio de ritos terríveis. Nas sociedades antigas era propriedade do pai, como os móveis e os animais. Na Idade Média era propriedade do senhor feudal. Antes que as crianças, a Europa revolucionária do século XVIII descobriu o bom selvagem e somente depois a criança, quando se teve necessidade da mão de obra infantil para fazer funcionar as tecelagens, a indústria têxtil e as minas de carvão na Inglaterra. A criança foi operária, camponesa, escolar…” (Rodari, Ejercícios de la Fantasia)

Somente agora as crianças estão saindo dessa espécie de gueto em que foram mantidas. Foram descobertas pela pedagogia, diz Rodari, logo pela psicologia, pela pediatria, pela publicidade e pela indústria. Por último, chegaram a ONU, afirma, (não sem certa ironia) primeiro elaborando uma carta de direitos das crianças e em seguida proclamando o ano da criança.

Advogou pela existência de uma literatura infantil proveniente da tradição popular e da fábula para enquadrar-se dentro das necessidades diretas da criança, com suas fantasias paralelas a seu crescimento, e com o desejo de aventura dos jovens leitores. Desta maneira, a criança se libera da mediação da escola e conquista um primeiro plano, convertendo-se em um interlocutor direto dessa literatura escrita para ela. Rodari não apenas morreu convencido do avanço da literatura infantil, mas contribuiu enormemente, ele mesmo, ao dar a ela esse impulso em direção a terrenos inexplorados. Estava convencido de sua liberação dos estreitos limites da pedagogia e de sua definitiva inserção na cultura:

“Nunca se publicou tantos livros de contos como hoje, contos de todos os povos (europeus, africanos, asiáticos e sul americanos). … A fábula não está morrendo e nunca esteve tão viva como agora. Há cinquenta ou cem anos, os contos eram lidos e saboreados somente por um certo número de crianças e hoje, ao contrário, com a escolarização massiva e o aumento do nível de vida popular, conquistaram um número mais amplo de leitores e de ouvintes” (Ejercícios de la Fantasia).

Definitivamente Rodari era um otimista, talvez porque sempre lutou pela construção de um mundo melhor através de sua militância política, mas também, porque se nutriu sempre de sua relação ativa e direta com as crianças. Nelas apostou sua vida. O fez através de suas propostas pedagógicas, de suas crônicas jornalísticas e de sua literatura, fresca, lúdica e renovadora.

Acreditava na vontade da espécie, na força criadora, na capacidade de sobrevivência e transformação do mundo através de uma liberação e valorização da infância. Em uma conferência intitulada O que as crianças ensinam aos grandes, organizada pela Asociación Cultural Italiana, um ano antes de sua morte, termina dizendo: (e eu me uno as suas palavras também para terminar)

“Creio que pertencemos a uma espécie que não está dando os últimos suspiros. Pense no imperador romano que entrega sua coroa ao primeiro rei bárbaro: para ele era o fim do mundo e, pelo contrário, somente estava terminando o império romano do ocidente: depois o mundo continuou. Pense em Luis Capeto quando subiu à forca “o fim do mundo, matam o rei!” e, pelo contrário, era somente o fim do feudalismo; logo o mundo seguiu adiante. É certo que agora estamos em presença de armas que podem conduzir ao final, talvez não do mundo, mas sim da humanidade, da sociedade civil em que vivemos. Mas quando se fala destas coisas com as crianças, me parece que a pergunta que mais as apaixona procede delas: que temos que fazer então?. Quer dizer, nelas nasce, ante todos estes motivos de pessimismo, um desespero, que seria a base de algo assim como um suicídio de massas que ninguém propõe para a humanidade. Delas surge a exigência de que algo deva se fazer, que apela ao que Gramsci chamou tão acertadamente “o otimismo da vontade”. Temos razão para ser pessimistas, mas são as crianças que nos pedem que usemos nosso otimismo da vontade. (Ejercícios de la Fantasia).

Suas palavras são uma lição para os obscuros tempos em que vivemos.

Referências Bibliográficas

Gianni Rodari, Erase dos veces el barón Lamberto. Barcelona: La Galera, 1987. Era duas vezes o barão Lamberto. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2001.

___________, La Góndola fantasma. Barcelona: Bruguera, 1980

___________, Las aventuras de Tonino el invisible. Bogotá: Panamericana, 1998.

___________, Pequeños vagabundos. Barcelona: Bruguera, 1982.

___________, Cuentos escritos a máquina. Buenos Aires: Alfaguara, 1991.

___________, Cuentos por teléfono. Barcelona: Juventud, 1998. Fábulas por telefone. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2006.

___________, La flecha azul. Barcelona: La Galera, 1986

___________, Cuentos largos como uma sonrisa. LBarcelona: La Galera, 1987.

___________, Cuentos para jugar. Bogotá: Santillana, 1993. Histórias para brincar. São Paulo: 34, 2007.

___________, El planeta de los árboles de navidad. Madri: S.M., 1994.

___________, Gramática de la fantasía. Barcelona: Reforma de la Escola, 1976. Gramática da fantasia. São Paulo: Summus, 1982.

___________, Ejercicios de Fantasía. Barcelona: Ediciones del Bronce, 1981.

___________, Los enanos de Mantua. Madri: S.M.

Antoine Ottavi, La literatura italiana contemporánea. Cidade do México: Fondo de Cultura Económica, 1983.

Jacqueline Held, Los niños y la literatura fantástica. Barcelona: Paidós Educador, 1987. O imaginário no poder. As crianças e a literatura fantástica. São Paulo: Summus, 1980.

José Luis Polanco, Rodari: las provocaciones de la Fantasía. Revista CLIJ, no. 36, fevereiro, 1992.

Sorano Marc, La literatura para niños y jóvenes, Guía de exploración de sus grandes temas. Buenos Aires: Colihue, 1995.

Tzvetan Todorov, Introducción a la literatura fantástica. Cidade do México: Coyoacán, 1998. Introdução à literatura fantástica. São Paulo: Perspectiva, 2008.

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  • Beatriz Helena Robledo

    Nasceu na Colômbia. Especialista e pesquisadora nas áreas de literatura infantil e juvenil e leitura. Com mais de 25 anos de experiência na área, é autora de vários livros. Foi subdiretora de leitura e escrita do CERLALC, de 2006 a 2007 e subdiretora da Biblioteca Nacional da Colômbia, de 2008 a 2010. Atualmente é consultora e professora. Membro da Rede de Apoio Emília.

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