Lampião e Lancelote

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Um encontro inusitado entre a tradição brasileira e a tradição medieval, entre duas figuras míticas, ambas à margem do seu tempo, é a base da narrativa escrita e visual de um dos mais importantes álbuns publicados no Brasil nos últimos anos. Premiado nacional e internacionalmente (recebeu Menção Honrosa no Bolonha Ragazzi Award em 2007), este álbum selou, sem dúvida, o reconhecimento internacional da qualidade artística e gráfica da produção editorial brasileira do livro para crianças e jovens.

Publicado em 2006, Lampião e Lancelote, é um livro de artista que inaugura a carreira autoral de Fernando Vilela, artista plástico e gravurista. Resgatando gêneros e tradições, como o cordel, o romance maravilhoso e de cavalaria, o autor constrói uma narrativa gráfica onde o cuidado com o texto e a força e beleza das imagens se articulam tanto formalmente, como do ponto de vista da narrativa.

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À primeira vista, o deslumbramento com as ilustrações e com a materialidade do livro podem fazer com que o texto fique num segundo plano, porém o tratamento que recebe é cuidadoso e elaborado. O autor opta por uma prosa poética na qual , da mesma forma que as cores prata e cobre distinguem os personagens, as rimas poéticas, o improviso do cordel e a prosa marcam rupturas e diferentes níveis narrativos. Nesse sentido, ambas as linguagens se casam e produzem uma obra poética e visual, cuidadosa, arrebatadora e surpreendente.

Repleto de história, as imagens se sucedem como em um filme, onde planos gerais e fechados, cortes, ângulos e zooms vão compondo uma narrativa visual construída em cima de inúmeras referências: das iluminuras medievais e pinturas renascentistas para construir a densidade simbólica de Lancelot, às xilogravuras populares e registros fotográficos para representar Lampião e toda a aridez e brasilidade do sertão. Com direito, inclusive, a “citações” em homenagem a um dos maiores ícones modernos responsáveis pela recuperação simbólica do sertão: Glauber Rocha.

O que chama a atenção não é a quantidade de recursos utilizados pelo autor, ao contrário, é a escolha precisa de poucos elementos por meio dos quais Fernando consegue retratar o encontro desses dois personagens, seguido do duelo e de seu surpreendente desfecho. Apostando na força e no predomínio do brilho, para Lancelot e sua armadura prata que tudo ilumina ao seu redor, e na luz cobre do couro das roupas de Lampião e do sol escaldante do sertão, o autor abusa dos contrates numa paleta de cores que, a rigor, soma às duas cores especiais o preto e o branco do papel. Disto resulta uma explosão de brilhos metálicos e luzes de sol e terra escaldante que ganham destaque nos fundos pretos das páginas duplas.

Lampião e Lancelote-ilus

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Para além disto, a narrativa ganha densidade pelas técnicas escolhidas e pela aposta em diversas texturas – da madeira ao metal, passando pela terra batida e rachada –, conseguidas graças ao trabalho original e de investigação do artista que utilizou lápis, pincel e carimbos. Marca registrada do autor, os carimbos feitos de borrachas, quando sobrepostos e articulados, criam as imagens do livro, numa linguagem iconográfica própria, responsável pela identidade, pelo detalhamento e pelo volume das ilustrações. As imagens foram concebidas de forma pouco convencional. Fernando trabalhou pensando na sobreposição das cores, numa mesa de luz, projetando o que seria a imagem final do livro impresso. Ele conta que: “Para cada ilustração foram realizadas duas ou três imagens, digitalizadas separadamente. O segundo momento da criação foi no computador, com o programa gráfico Adobe Photoshop – ferramenta que utilizei para montar as sobreposições das cores, deixando evidente sua justaposição. Algumas provas de prelo foram fundamentais para visualizar como funcionariam realmente essas sobreposições das cores no livro impresso”. O resultado deste trabalho de pesquisa artística e gráfica são verdadeiros quadros que se sucedem a cada dupla para contar esta epopeia.

Lampião e Lancelote-ilus

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A forma aqui se casa com o conteúdo que se materializa em um projeto editorial redondo e cuidadoso, num livro objeto onde tudo casa com o objetivo de valorizar texto e imagem. A articulação formal entre texto e imagens obedece um projeto gráfico que integra todos os elementos da narrativa de uma forma orgânica. A mancha do texto e a imagem se articulam e confundem. O livro pensado como suporte, onde o formato fora dos padrões permite, numa página dupla, uma linha de horizonte de 70 cm. Onde a altura, 24 cm, conduz o olhar a um determinado plano, de acordo com a aproximação ou distanciamento do foco escolhido pelo autor. Tudo coroado por um trabalho gráfico exemplar e de primeira qualidade e por uma impressão impecável.

Brilho, luz, sombra, espaço, movimento e força – dos galopes dos cavalos, dos trotes dos jegues, das manadas de bois, das lanças e espingardas que se misturam como numa dança na luta entre os dois personagens – são alguns dos elementos centrais que envolvem e surpreendem o leitor desde a primeira página. Mas esse leitor que já foi fisgado e acompanha esse encontro, pactuado com um narrador que desde o início remete a história ao mundo da ficção, é pego de surpresa, quando antes do desenlace a história muda de rumo.

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O ponto final da grande batalha, que toma conta da página dupla que se abre numa profusão de ícones simbólicos sobrepostos e misturados é a risada contagiante de Lampião, que se espalha numa gargalhada coletiva. E aqui fica clara outra linha narrativa que abre para uma leitura menos explícita: o encontro entre duas culturas, sua integração, o fim de um conflito gerado pelo estranhamento e pelo desconhecimento do outro. Alusão à história do Brasil, mas não só. O riso, apontado desde Aristóteles como fonte para se chegar ao conhecimento, põe fim à guerra e enfatiza a ambiguidade histórica do próprio Lampião. O humor e a sátira são as verdadeiras substâncias desta narrativa, pontilhada de bom humor, que abre e fecha em si mesma, mas que constrói uma ponte para além da ficção.

A obra propõe uma leitura subversiva da história oficial e aposta na imaginação e na fantasia do leitor, por meio de seus diferentes níveis de leitura. Lampião e Lancelote é um grande álbum, uma obra de arte onde se articulam conteúdo e forma de maneira exemplar.1Artigo publicado na revista Hors Cadre[S] – “Zooms sur Cinq Ans de Création” – Numéro Spécial, março 2012

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    Artigo publicado na revista Hors Cadre[S] – “Zooms sur Cinq Ans de Création” – Numéro Spécial, março 2012

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  • Dolores Prades

    Fundadora, diretora e publisher da Emília. Doutora em História Econômica pela USP e especialista em literatura infantil e juvenil pela Universidade Autônoma de Barcelona; diretora do Instituto Emília e do Laboratório Emília de Formação. Foi curadora e coordenadora dos seminários Conversas ao Pé da Página (2011 a 2015); coordenadora no Brasil da Cátedra Latinoamericana y Caribeña de Lectura y Escritura; professora convidada do Máster da Universidade Autônoma de Barcelona; curadora da FLUPP Parque (2014 e 2105). Membro do júri do Prêmio Hans Christian Andersen 2016, do Bologna Children Award 2016 e do Chen Bochui Children’s Literature Award, 2019. É consultora da Feira de Bolonha para a América Latina desde 2018 e atua na área de consultoria editorial e de temas sobre leitura e formação de leitores.

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