Livros temáticos

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Quando pensamos em adultos, reconhecemos sem nenhum problema o valor de quadrinhos, livros, revistas como meios interessantes para discutir política, informação, comportamento, acontecimentos mundiais (como guerras, por exemplo). Quando a questão é relativa aos livros infantis, porém, costumamos torcer o nariz para os chamados livros temáticos. Parece que, abordando um tema, a obra se torna menos literatura, menos arte. Ou que certos temas estão fora do alcance – e do interesse – das crianças.

O propósito de contar uma história às crianças, sobre algum tema importante, é mais do que legítimo, e a avaliação deveria ser feita a partir dos resultados alcançados. Grande parte dos livros temáticos pode ser considerada mais didática que literária, e corre-se sempre o risco de esbarrar nos limites do “politicamente correto” e do status quo. Mas nem tudo que é produzido nesse campo é assim.

Há pouco tempo, a revista italiana de livros para crianças e jovens Hamelin (nº 30) tratou da questão no artigo “Contra os livros temáticos”. A revista abordou alguns ângulos que serviram para levantar a questão. Atualmente, na Itália – onde faltam histórias fortes, enquanto florescem livros de imagens bonitos, mas que dizem pouco – esse gênero, se bem realizado, tem muito a oferecer. Mesmo porque faz parte do processo de formação da capacidade de compreender, extrapolar, interpretar, discutir a partir de textos instigantes e complexos.

Alguns temas precisam ser tratados com os jovens leitores, precisam chegar até eles em um modo inteligente, e para isso livros e álbuns ilustrados podem ser ótimos veículos. Crianças e jovens, também levantam – e refletem sobre – questões sérias sobre o mundo em que vivem. Muitas dessas questões podem afetá-los diretamente e de outras depende a sua própria sobrevivência.

Daí o belo exemplo de duas editoras italianas que, contrariamente à tendência geral, se dedicam, desde a sua fundação, a levar, de um modo muito interessante, dois importantes temas sociais até os pequenos: a interculturalidade (e os fluxos migratórios) e a homo afetividade (e as chamadas “famílias arco-íris”, isto é, famílias de pais de mesmo sexo).

A primeira é a Editora Sinnos, romana, fundada e dirigida pela extraordinária Della Passarelli. A segunda é a Lo Stampatello, de Milão, das mães-arco-íris Francesca Pardi e Maria Silvia Fiengo. Duas experiências realmente dignas de nota, que merecem ser conhecidas também no Brasil.

Sinnos

Fundada em 1990, por Della Passarelli e Antonio Spinelli, como uma cooperativa social, no interior do Presídio de Rebibbia, em Roma, Sinnos revela ainda hoje uma das realidades sociais mais difíceis e conturbadas do país, a falta de políticas públicas adequadas para a imigração. A ideia nasceu do encontro dos voluntários do Centro de Informações sobre Detentos Estrangeiros na Itália (CIDSI) e de alguns detentos.

“Livros que deixam marcas”: é assim que a editora se define. Sua coleção de estreia, “Mappamondi”, fez de protagonistas os primeiros imigrantes na Itália, através de suas histórias de vida narradas em duas línguas. A coleção era dedicada às crianças italianas e estrangeiras que, no início de 1990, iniciavam sua convivência nas escolas. Crianças agora adultas que trabalham e estudam, que constituíram família e que fazem com que o mundo inteiro esteja presente nos bancos das escolas do país; uma riqueza para ser aproveitada de um modo amplo, já que “são cidadãs italianas e a realidade atual do país pede uma sociedade intercultural”, como afirma Della Passarelli.

Em todos esses anos, e depois de várias outras coleções, sempre respeitando a temática inicial, a Sinnos tem desenvolvido um projeto editorial rico e corajoso, construído a partir da convicção de que os livros são indispensáveis para um mundo livre e que é fundamental voltar a atenção principalmente para as crianças. “Cabe a nós, adultos, oferecer a elas os melhores instrumentos para que possam crescer sábias, capazes de pensar e de imaginar com mentes livres”.

O catálogo da Sinnos oferece muitas lendas de povos distantes, por meio de alguns “personagens-ponte”, como dizem eles: protagonistas de aventuras e histórias que viajaram pelo mundo sem usar passaporte. No centro do projeto editorial, os valores que pretendem transmitir: solidariedade, acolhida, amizade, intercultura, capacidade de escolha, de mudar, de não se render.

A vontade de inclusão é tão grande que a Sinnos tem uma coleção dedicada especialmente aos leitores “preguiçosos” ou com dificuldades de leitura, escrita com uma fonte especialmente adaptada (“Leggimi” = Leia-me). Ler deve ser um direito de todos, professam. Também aos “pequeninos-muito-pequeninos”, por muitos considerados “não-leitores” e portanto colocados à margem das experiências de leitura, a editora prestou atenção: “porque a coisa mais linda que se pode oferecer a uma criança é o tempo da leitura em voz alta”.

Há pouco tempo, Sinnos lançou um projeto chamado “Os livros? Mandemo-los às escolas”, que estabelece uma interessante parceria entre livrarias e bibliotecas escolares. O projeto já é sustentado por diversas instituições públicas e privadas e vem preencher um espaço importante na acessibilidade dos livros infantis em relação às camadas sociais menos favorecidas, cada vez mais presentes num país em crise (na Itália não existem os programas governamentais de distribuição de livros às escolas como no Brasil, são os próprios pais os intermediários, contando, é claro, com o apoio das inúmeras bibliotecas públicas atuantes no país, que apresentam os livros para seu conhecimento e seleção).

Della

Della Passarelli é uma alma incansável e apaixonada. Poucos minutos em sua companhia criam uma experiência inesquecível, tal seu carisma e sensibilidade. Profunda conhecedora das temáticas ligadas ao multiculturalismo, sabe muito bem a diferença entre uma sociedade multicultural (como hoje pode ser definida a sociedade italiana) e uma intercultural. Trabalha assiduamente para explicar essa diferença e para contribuir à passagem da primeira à segunda. É escritora para crianças, tendo publicado os livros Franci Goal (em 2002) e Tenerè (2010), ambos pela Sinnos.

Lo Stampatello

Em italiano, falar “em letras maiúsculas” (a stampatello) significa falar claro, sem rodeios, diretamente. É justamente este o objetivo da Editora Lo Stampatello: tratar com as crianças um tema delicado, o da homo afetividade, de um modo leve, mas ao mesmo tempo instigante e reflexivo.

Atualmente, muitas – e a cada dia mais, graças a progressos nos direitos civis – crianças vivem a situação de ter duas mães ou dois pais. Na Itália se calcula que hoje sejam cerca de 100 mil menores vivendo com ao menos um pai ou mãe homossexual, a maior parte nascida dentro de relações heterossexuais. “Em um país em que a homossexualidade é ainda a pior ofensa” – dizem as fundadoras Francesca e Silvia – “o senso comum parece considerar inoportuno trazer ao conhecimento dos filhos a realidade afetiva e material vivida por seus pais. É portanto um tema interditado às crianças, do qual não existia, antes de nós, uma representação para a infância”.

Embora muita gente, e sobretudo muitas instituições, sejam contrárias à geração (através de doação de esperma ou de óvulos) ou adoção de crianças por casais de mesmo sexo, inúmeros estudos e até um simples olhar atento demonstram que essas crianças vão muito bem, obrigado. O que comprova que a verdade e a autenticidade são a base para um relacionamento familiar saudável. O que não vai tão bem assim é a aceitação por parte de uma sociedade hipócrita e atrasada, que, a despeito dos fatos, insiste em defender certos preceitos que a essa altura já deveriam ter sido superados. Isto faz com que, em termos legais, as conquistas sejam ainda pequenas, embora já existam alguns resultados significativos, especialmente nos últimos anos.

Os casais de mesmo sexo devem pelejar para fazer valer o óbvio. Para mostrar que os conceitos de amor e família vão muito além das aparências e das convenções. E sobretudo que, numa sociedade justa, os direitos civis não podem depender de critérios aleatórios como cor da pele, povo de origem, condição social ou orientação sexual. Foi nessa briga que nasceu, na casa de uma família arco-íris milanesa, a Lo Stampatello.

O casal Maria Silvia e Francesca, mães de quatro filhos, superocupadas em uma rotina familiar tradicional e alternativa ao mesmo tempo, dedica-se à editora em meio a tantas outras tarefas maternas e profissionais. A ideia surgiu quando Francesca soube que seu texto Pequena história de uma família, que escreveu quando a filha mais velha entrou na escola fundamental e teve de enfrentar a curiosidade dos colegas, não seria mais publicado por uma grande editora que antes havia aceitado publicá-lo. “A temática tratada é delicada demais”, explicou o editor, justificando-se por ter voltado atrás. Com Silvia, se informaram e descobriram que poderiam abrir elas mesmas uma editora, mesmo que isso significasse trabalhar muito e receber pouco.

Depois de Pequena história de uma família, foi a vez de Qual é o segredo do papai, em que um pai divorciado apresenta aos filhos seu novo namorado, e O patinho bonitinho, história de um patinho que adora cozinhar, pintar e vestir-se de rosa. A cada novo título (agora já são 8 no total), a editora causa polêmica, mas obtém também cada vez mais sucesso de público e de crítica. Claro, livros assim são cada vez mais necessários.

Para o livro Pequeno ovo, prêmio Andersen de melhor livro de 0-6 anos de 2012, carro-forte da editora, as duas convidaram como ilustrador o cartunista Altan, muito famoso na Itália, principalmente por seu celebrado personagem Pimpa, uma cadelinha com pintas, amada por todas as crianças pequenas daqui. Ele aceitou sem nem titubear, mesmo sendo um projeto de uma editora nova e pequena. O livro foi apresentado com muito estardalhaço na mídia local e sob o protesto (houve reações bastante agressivas e ofensivas) de instituições conservadoras. Alguns pediram sua proibição nas bibliotecas e escolas públicas, mas felizmente venceu o bom senso.

A atividade da editora, mesmo tendo sido criada com o objetivo de preencher uma lacuna temática, não quer se limitar à homo afetividade e às famílias arco-íris: pretende ampliar o olhar sobre os mais variados temas afetivos e familiares, “levando em consideração experiências pouco presentes na literatura para crianças, mas que, vividas em primeira pessoa, podem trazer à tona mil perguntas ou um forte sentimento de alteridade”. Nesse sentido, lançaram na Itália o livro Leyla nel mezzo (Um outro país para Azzi > leia um trecho aqui) de Sarah Garland, publicado no Brasil pela editora Pulo do Gato.

Que a editora não queira se limitar a uma única temática é bom. Porém, esperemos sinceramente que continue a publicar livros sobre a temática inicial com a mesma força que faz hoje. Porque Francesca e Maria Silvia o fazem “de dentro”, e é isso o que as torna tão especiais, ainda mais numa fatia de mercado tão exigente e saturada.

Oferecer uma possibilidade de crescimento pessoal aos leitores, crianças e adultos, continua sendo o objetivo principal de Della Passarelli, de Francesca e Maria Silvia, enquanto sonham para os futuros cidadãos um mundo melhor.

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  • Claudia Souza

    Claudia Souza é psicóloga, escritora e pesquisadora da Infância. Mineira, mora em Milão há seis anos, onde trabalha com projetos de intervenção cultural direcionados a crianças, entre eles o grupo ProgettoQualeGioco e o Istituto Callis Italia. Trabalha ainda na International School of Milan. Publica livros infantis em português, italiano e inglês e artigos em jornais e revistas no Brasil e na Itália. (www.quemconta.wordpress.com). É membro da Equipe de Apoio Permanente da Revista Emília.

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