Mediação para além das primeiras camadas da leitura – Parte 3

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A Comunidade Educativa CEDAC encerra a série de seleções de obras infantis em que destaca aspectos a serem explorados nas mediações com os pequenos leitores

No terceiro e último texto desta série de indicações de livros infantis, a equipe da Comunidade Educativa CEDAC apresenta sete obras e compartilha sua análise a fim de jogar luz sobre aspectos que podem ser explorados na mediação com crianças da Educação Infantil e dos anos iniciais do Ensino Fundamental.

Mais uma vez, a intenção aqui é evidenciar a importância que o mediador deve dar à escolha do título e a necessidade de que cada leitura seja planejada a partir da obra específica. Esta seleção foi pensada por formadoras da Comunidade Educativa CEDAC, especialmente para professores e coordenadores pedagógicos, mas esperamos que possa ser útil para os mediadores de forma geral, contribuindo para ampliar as reflexões sobre a necessidade de aprofundar o estudo das obras que escolhemos, de forma a ir além das primeiras camadas da leitura, em que predomina o tema, para alcançar, gradativamente, desenvolvimento das competências leitoras almejadas.

Como dissemos no último texto, se quisermos que nossos leitores em formação aprendam a utilizar cada vez com mais autonomia diferentes estratégias no processo de leitura, precisamos, como mediadores, mergulhar em cada obra e buscar compreender primeiro quais as experiências estéticas que elas nos proporcionam e, então, nos prepararmos para provocar um diálogo mais profundo entre os leitores e entre eles e a obra..

Para colaborar com esta imersão, Fátima Fonseca e Sandra Medrano, duas das coordenadoras pedagógicas da área de Língua Portuguesa da CE CEDAC, com atuação em projetos voltados à formação de leitores, selecionando algumas obras de literatura infantil e elaboraram textos em que, destacam as características literárias de cada uma, buscando salientar o que é específico e especial. Em julho, compartilhamos as experiências das duas enquanto leitoras de seis livros. Em agosto, foram abordadas outras quatro. Neste último texto, analisamos mais sete obras. Esperamos que sejam bem aproveitadas por professores e mediadores de leitura, para que muitos leitores em formação possam se impactar com o que há de especial nestes livros e, assim, ampliar seus conhecimentos como leitores literários e como formadores.

Livro: Eu cresci aqui
Autora: Anne Crausaz
Editora: Pequena Zahar 

Eu cresci aqui é um livro que se encontra no limite entre dois mundos dos livros: o ficcional e o não ficcional, e por isso possibilita aos leitores uma interessante ampliação da experiência leitora.E por que está no encontro desses dois mundos?

Há alguns livros que contam histórias criadas em reinos distantes, com príncipes, princesas, fadas e bruxas ou aventuras inventadas com grandes desafios ou personagens de universos imaginados, e dizemos que pertencem ao universo da ficção. Há ainda outros livros que explicam fatos históricos que a humanidade viveu ou informa alguns aspectos da natureza ou descreve invenções humanas. Estes livros dizemos que fazem parte dos livros não ficcionais.

Eu cresci aqui encontra-se na intersecção entre esses dois universos, pois apresenta a forma como se desenvolve uma planta, da semente até virar uma árvore, mostrando o transcorrer das estações do ano, é portanto não ficcional, mas relatado num universo que não é real, ou seja, também ficcional.

Esse viés ficcional vem, entre outros aspectos, da escolha da voz narrativa. Quem narra a história deste livro? Pois é, a personagem principal, que começa como semente, cresce e vira uma árvore. É ela quem nos conta essa história, que se utiliza de aspectos não ficcionais, como os ciclos da natureza, o ecossistema relacionado a esse ambiente, a curvatura sofrida pelo tronco devido a uma chuva forte, a relação com os animais que vivem realmente na natureza, para narrar uma história que não aconteceu de verdade.

Incrível essa mistura, não é mesmo? Provavelmente essa conversa com os alunos pode ser muito interessante para que possam entender como as classificações – ficcional e não ficcional – pode não bastar em alguns casos, pois algumas obras borram esses limites que tentam ser rígidos.

Outro aspecto que merece destaque neste livro: as imagens. Note como os traços, os contornos, as matizes de cores são distintas de algumas obras já conhecidas. Isso porque esta autora – designer gráfica, de formação – se utiliza aqui de recursos digitais para a composição das imagens. Diferente das ilustrações feitas à lápis ou com pincel, neste é o computador que serve como “instrumento” de concretização da intenção artística. Isso resulta em imagens com características bastante diferenciadas. Que tal explorar esse aspecto com os alunos? Uma possibilidade é analisar como os traços parecem ser produzidos e compará-los com outras imagens que sabidamente são produzidas de maneira diferente.

Além das imagens, as palavras utilizadas também mostram um diferencial. O texto é produzido com frases curtas. A autora as escolhe cuidadosamente, para ser muito objetiva no que apresenta, como por exemplo, nas páginas em que diz: “O outono me cobriu” / “e me protegeu do inverno. Adormeci.” Com essas palavras, junto às imagens, ela explicita a narrativa. “Outono” define a estação do ano em que a narrativa inicia e a imagem das folhas caindo – típico dessa estação no hemisfério norte – sobre a semente, mostra a proteção indicada nas palavras. Com absoluta economia de palavras e traços, consegue expor a ideia do processo de desenvolvimento da planta.

Outro aspecto interessante é a forma como a autora inclui informações de “cunho científico”, ao apresentar como a joaninha auxilia a árvore ao comer os pulgões, ou como as gralhas se alimentam das minhocas que ajudam no crescimento das plantas (por isso chamadas de “amigas”) e como o caramujo é voraz ao comer suas folhas.

Ao final do livro, a autora nos presenteia com um lapso de tempo. Numa dupla de páginas só com imagem, ela cria um pequeno momento de contemplação, e como um engano ao leitor, que pode achar que ali termina a narrativa, ao virar a página, a graça se completa: o livro se torna circular e voltamos ao começo da narrativa, com a chegada da sementinha na terra para mais um nascimento de árvore.

Livro: Gorila
Autor: Anthony Browne
Editora: Pequena Zahar

A delicadeza dessa história é imensa! E como ela é construída?

Concentrar essa potência só na trama seria reduzir todo o cuidadoso trabalho de criação, deste autor britânico amplamente premiado por seus livros. Isso porque a trama nos levaria somente a abordar a relação entre pai e filha no mundo contemporâneo. Mas daí perderíamos todo o restante que nos oferece Gorila.

De que restante estamos falando? Das imagens, das palavras que compõem o texto escrito e de como juntos proporcionam uma experiência leitora intensa e delicada.

Vamos começar pela capa. O autor nos apresenta um gorila (seria o mesmo que dá título ao livro?) em tamanho muito grande, em comparação à menina, que se encontra ao seu lado. Ambos se olham com um sorriso amistoso. Parecem nos convidar a entrar nessa história, pois começamos a pensar o porquê deste sorriso e queremos conhecê-los. Começando pelo gorila, que já se apresenta de modo bastante distinto. Normalmente um animal assustador, aqui usa gravata borboleta e parece bastante simpático. E, em seguida, essa menina, com bochechas rosadas, que parece muito satisfeita na presença desse animal-amigo.

Ao abrir a capa, numa espécie de pequena abertura de janela, presenciamos um beijo entre ambos. Então confirmamos, eles são realmente conhecidos! Mais uma virada de página, e lá está a menina com um caderno que tem um gorila na capa. Seria ela uma fã desse animal?

Sim! Logo nas primeiras palavras, o autor nos conta dessa relação intensa entre a menina Hannah e os gorilas. E assim a história se desenrola. Nas páginas testemunhamos a relação entre pai e filha, a solidão da menina, o apego ao gorila e sua aventura noturna até chegar ao dia do seu aniversário, em que tudo ganha outras possibilidades.

Para apreciar a narrativa de forma completa, é fundamental estarmos atentos aos detalhes que o autor cria nas imagens. Pois ela às vezes dão graça, às vezes complementam sentido, outras vezes ampliam informações.

Note por exemplo, a quantidade de gorilas que são desenhados em diversos momentos da história, no apoio do corrimão, no contorno da árvore que se vê da abertura da porta ou no rosto da estátua da liberdade. Como marcar deste autor, há a inclusão de obras de artes clássicas, como a Monalisa, com o rosto de um gorila. Veja também como Browne desenha um interruptor que sorri, quando Hannah está muito feliz, como se quisesse representar que quando estamos felizes, “o mundo inteiro parece nos sorrir de volta”. Outras imagens parecem nos provocar: por que há um quadro na sala com o mapa da África? Seria porque são de lá os gorilas? Por que há uma banana no bolso da calça do pai de Hannah quando ele a convida para irem ao zoológico? Bons questionamentos para se fazer em torno da leitura!

Outro ponto que pode dar uma ótima conversa com crianças é o que ocorre com o gorila de pelúcia que Hannah ganhou de presente. Ele se transforma mesmo em um gorila que a leva para passear à noite? Ou será que foi somente um sonho?

Não há necessidade em chegar em uma reposta certa e identificar as erradas. O mais interessante neste ponto é proporcionar aos alunos espaço para argumentarem em prol de suas hipóteses. Por exemplo, se acreditam que foi um sonho, o que há de indícios no livro que apoiam esse argumento? Se acreditam que aconteceu de verdade, o que encontram de pistas que isso tenha sido vivido?

Voltar ao livro, virar as páginas, observar as imagens e reler o texto escrito quantas vezes forem necessárias para encontrar estas pistas é uma forma de ajudar os alunos a se formarem como leitores, pois argumentar, buscar indícios no texto para fundamentar objetivamente suas posições, não com informações aleatórias (achismo), mas sim com dados que encontram nas imagens ou nas palavras são comportamentos leitores que se desenvolvem rumo ao progresso cada vez maior de um leitor competente.

Livro: Mania de explicação
Autora: Adriana Falcão
Ilustradora: Mariana Massarani
Editora: Salamandra

O livro Mania de explicação, apesar de narrativo, podemos dizer que contém muita poesia. Isso porque, se considerarmos como poesia uma forma diferente de ver as coisas como todo mundo vê, as definições que são apresentadas por Adriana Falcão são pura poesia. Por exemplo, a forma de a autora definir solidão: “Solidão é uma ilha com saudade de barco”, ou intuição: “Intuição é quando o seu coração dá um pulinho no futuro e volta rápido”, ou ainda para explicar o que é antes: “Antes é uma lagarta que ainda não virou borboleta”.

Além disso, algumas definições explicam tão bem o que significam, que dicionário nenhum seria capaz de melhor descrição, como em: “Angústia é um nó muito apertado bem no meio do seu sossego”, ou “Preocupação é uma cola que não deixa o que não aconteceu ainda sair do seu pensamento”, ou “Sucesso é quando você faz o que sabe fazer só que tudo mundo percebe”.

As imagens de Massarani também têm um valor especial. Seus traços bastante característicos (quando conhecemos suas obras, facilmente reconhecemos seus traços), junto com o texto escrito proporcionam experiência leitora distinta. Há, por exemplo, definições em que as palavras junto com as imagens ganham um toque de graça, como quando diz: “Ainda é quando a vontade está no meio do caminho” e a imagem mostra uma situação bastante inusitada mas que faz todo o sentido para essa explicação! Ou quando a ilustradora conta com um conhecimento de mundo dos leitores e faz uma brincadeira, como em: “Vontade é um desejo que cisma que você é a casa dele”, em que desenha uma serpente enrolada em uma menina (que poderia ser Eva) lhe oferecendo uma maçã.

Para que os estudantes possam realmente se divertir e interagir com a narrativa, vale a pena ler as definições uma a uma e conversar sobre elas. Por vezes não mostrar as imagens, só ler, discutir a definição apresentada e só depois mostrar as imagens e tornar a abrir a discussão, para que possam compartilhar suas opiniões sobre a forma como ela mudou a ideia inicial ou não.

Também pode ampliar a experiência leitora, propondo que pensem em novas definições. Como isso não é tarefa simples, é importante que se proponha que discutam em grupo e que considerem palavras que remetam a universos próximos aos abordados pelas autoras, como sentimentos, ações e situações (exemplos: “coragem”, “abraço”, “cansaço”, “medo”). Assim, o que conheceram pode servir de referência para novas explicações a serem criadas por eles.

Livro: Jacaré, não!
Autores: Antonio Prata e Talita Hoffmann
Editora: Ubú

Jacaré, não! é um livro que convida, desde o título e a forma como foi projetado graficamente, a brincar. A afirmação, que ouvimos quase como um grito – Jacaré, não! – é facilmente intuída como uma fala de criança, dentro de uma brincadeira. E é isso mesmo que acontece quando começamos a ler com elas. Com o uso de um recurso muito potente para envolver as crianças – a repetição – os autores possibilitam que as crianças façam parte ativamente da narrativa, pois rapidamente memorizam as frases “Jacaré?! Não! Jacaré não é…, jacaré é bicho! que…!” e repetem. Mas a repetição tem uma graça a mais, pois a cada trecho mudam duas palavras, que tem a ver com o contexto que foi narrado anteriormente e que dão ritmo às frases (“Jacaré?! Não! Jacaré não é brincadeira, jacaré é bicho! que doido!” ou “Jacaré?! Não! Jacaré não é mochila, jacaré é bicho! que viagem!”).

Outro aspecto muito interessante do livro é a quê ele se refere. Todos os itens têm relação direta com o cotidiano das crianças (algumas rotinas diárias das crianças, suas brincadeiras, o que comem…). Isso permite uma identificação e envolvimento intensos.

Identificação e acolhimento são os pontos chaves deste livro. Como se nota desde o início, e também pode ser lido nas primeiras páginas, a ideia é que as crianças possam tomar “posse” dessa história. Assim, os traços com que foi composta a personagem principal guardam, propositalmente, uma possibilidade de não serem identificados nem com uma menina nem com um menino. A ideia dos autores era que fosse muito democrático, no sentido de poder representar o leitor que estivesse com o livro em mãos, ou estivesse participando de sua leitura. Por isso, no texto de abertura, é sugerido que se troque o nome “Luiza”, pelo nome da criança que está lendo, e com poucas mudanças (se quiserem fazê-las), se adapte para a realidade deste leitor ou desta leitora.

Na escola, quando se lê para uma turma, a brincadeira pode ser trocar o nome de Luiza por diferentes nomes das crianças, nas diferentes situações. Isso além de possibilitar um encantamento – pois as crianças sentem que o livro foi escrito considerando que elas são parte da história – também permite que todas tenham participação na narrativa.

Neste livro, os aspectos gráficos têm grande relevância também na experiência visual. As cores fortes, algumas fosforescentes, são outro aspecto intencionalmente selecionado para proporcionar uma experiência estética nos pequenos leitores. Observe o uso do verde e do rosa.

Um mimo a mais aos leitores é a cobertura da capa que se desdobra em um lindo tapete que pode acolher, tanto o livro que se abre para a leitura com um grupo de crianças, como também pode servir como cenário para brincadeiras em outros momentos da rotina da turma, como forma de aproximar as crianças desse material gráfico e de sua narrativa.

Livro: Telefone sem fio
Autores: Ilan Brenman – Renato Moriconi
Editora: Cia das Letrinhas

Quem nunca brincou de Telefone sem fio na infância e se divertiu com o resultado final da frase ou palavra em comparação ao que foi dito inicialmente?

Telefone sem fio é uma tradicional brincadeira popular, na qual uma pessoa fala uma palavra ou frase (o “segredo”) ao ouvido de outra pessoa ao seu lado, de modo que os demais participantes não escutem ou descubram imediatamente qual é o “segredo”. Quem ouviu o segredo tenta então repeti-lo para o próximo participante, e assim por diante até chegar ao último, que deve contar o segredo em voz alta. Uma das regras do jogo é que o segredo não pode ser repetido ao ouvinte da vez. Por esse motivo é comum o segredo ser mal entendido e por isso passado ao demais ouvintes de forma cada vez mais deturpada, chegando totalmente diferente ao ouvinte final, e isso é o que torna a brincadeira divertida. É possível competir dois grupos para ver qual grupo chega com a palavra mais fielmente ao destino.

É essa a grande brincadeira que se acompanha no livro. Foi considerando esse repertório dos leitores que os autores, Ilan e Renato, propuseram a narrativa. Com um detalhe, como se trata de um segredo, não há texto escrito, pois não se pode saber o que se está falando. É um livro de imagens. É preciso “adivinhar” o que os personagens estão cochichando uns para os outros, e desta forma, o livro possibilita diferentes leituras a cada vez que se abre para lê-lo.

Alguns personagens são velhos conhecidos das crianças de tantas outras histórias: rei, pirata, vovozinha, chapeuzinho vermelho, cachorro, caçador e até um escafandrista. Essa familiaridade, com algumas referências aos contos clássicos, as convida ainda mais a imaginar esses cochichos, soltando a imaginação, o que faz com que apenas cada criança leitora, realmente possa adivinhar o que falam. O que um pirata poderia cochichar para o papagaio? Ou o que o lobo poderia falar ao ouvido da Chapeuzinho Vermelho?

O projeto gráfico contribui de forma crucial para uma relação especial entre o livro e seus leitores, a começar pelo seu tamanho. Imagine esse livro em um tamanho menor, o quanto de beleza se perderia! Se considerarmos um pequeno leitor ou uma pequena leitora, o tamanho do livro se aproxima praticamente ao seu tamanho, o que possibilita que se incluam como personagens e possam dar continuidade ao telefone sem fio. As crianças pequenas costumam se encantar com o tamanho desse livro e isso ainda pode compor a brincadeira.

A beleza das ilustrações é um caso à parte. E não poderia ser diferente, pois Renato Moriconi se inspirou em pinturas de artistas que eram grandes retratistas, como os italianos Paolo Uccello e Piero della Francesca e o alemão Hans Holbein. A ilustradora tcheca Kveta Pacovská diz que “as imagens de um livro ilustrado são a primeira galeria de arte que uma criança visita” e Moriconi, ao escolher esses grandes retratistas como referência para as ilustrações, garante a proximidade das crianças com essas pinturas. Sem o objetivo de que saibam nomes de pintores, técnicas ou coisas desse tipo; mas como referência que possa servir em outras experiências artísticas que venham a ter.

Cada retrato merece uma parada, assim como se faz quando se olha para um quadro em um museu, para perceber muitas coisas, como, por exemplo, que ora os personagens estão de frente, ora de perfil e o porquê; observar os detalhes de cada retrato, as cores, as expressões de cada personagem – atenção, curiosidade, alegria, estranheza.

Além dessa questão gráfica, é importante observar que o livro traz uma narrativa visual circular, começa e termina no bobo da corte. E por que começar e terminar com esse personagem? Seria como uma forma de explicitar a graça da brincadeira? Afinal, não era essa a função desse artista? Fazer rir. Talvez.

E no final, por meio da “invasão” de uma ilustração na outra, rompendo com os limites das bordas e das páginas, o que provoca uma mudança no movimento da narrativa e surpreende o leitor com uma cena ainda mais inusitada, assim como, geralmente, acontece no final dessa brincadeira, quando o que se diz não tem mais relação com o que foi dito no começo. Vale a brincadeira!

Por fim, é interessante saber que esse livro, que possibilita todas essas experiências para as crianças, faz parte de uma trilogia dos autores. Os outros dois títulos são: Bocejo e Caras Animalescas. Que possibilidades literárias esses outros livros oferecem? Que tal conhecê-los também?!

Livro: Não derrame o leite!
Autores: Stephen Davies e Christopher Corr
Editora: Pequena Zahar

Uma tarefa simples, levar uma tigela de leite sem derramá-lo para o pai. Será tão simples assim?

Esse é um livro surpreendente tanto do ponto de vista da narrativa como das ilustrações. É um livro que se lê esperando que algo aconteça. Acompanhamos a personagem Penda nessa tarefa de não derramar o leite que leva, em uma tigela, para o seu pai. Entretanto, os caminhos e as situações, que tem que enfrentar, parecem inimagináveis. Como poderia Penda andar por quilômetros, passar por dunas, por uma festa, por um bando de girafas brancas, atravessar um rio, uma montanha, com uma tigela na cabeça e não derramar nem um pingo de leite? O leitor fica na torcida, mas também na expectativa de que algo irá acontecer. E, ao final, algo realmente acontece e de uma forma ainda mais inesperada.

É assim que Stephen Davies e Christopher Corr nos convidam a conhecer uma cultura bastante diferente e que, apenas recentemente, passou a estar mais presente no universo dos livros infantis no Brasil. Uma viagem pelo continente africano! É esse o convite que nos fazem, mostrando-nos, pelos caminhos de Penda, aspectos geográficos e culturais desse território. Dessa forma, possibilitam às crianças, e a nós adultos, conhecer mais e ampliar, assim, nosso repertório sobre a cultura africana.

Logo nas primeiras páginas é possível apreciar uma cena que vai dizer muito desse lugar onde a narrativa acontece. Parece um quadro que nos fornece muitos elementos para uma boa conversa. O que essas ilustrações nos mostram? Aqui pode ser interessante explorar essas imagens com os pequenos leitores. Vários aspectos podem ser destacados: os detalhes dos cabelos de homens e mulheres – símbolo de força e beleza na cultura africana; as roupas com cores vibrantes e diferentes desenhos; os diversos ornamentos, até o detalhe dos brincos; a forma como, homens e mulheres, carregam diferentes coisas na cabeça; como as mulheres carregam as crianças; os diferentes animais que compõem a cena. É tanta diversidade que nos dá uma ideia da pluralidade cultural deste continente.

Durante o caminho que Penda faz para levar o leite ao pai, é como se fizéssemos um zoom em diferentes partes dessa cena inicial e, desta forma, retomássemos algumas especificidades desse cenário.

O texto é bastante ritmado, alternando a voz do narrador e as falas de Penda consigo mesma, durante todo o caminho. Ela repete frases no imperativo, como se aconselhasse a si mesma, imitando os conselhos que sua mãe lhe deu: “Não se apresse, não tropece, não se afobe, menina!”, como muitas vezes fazem as crianças, imitando os adultos. Esse momento da leitura pode, aos poucos, ser partilhado com as crianças, assim elas podem perceber essa brincadeira que a menina faz consigo mesma. E assim Penda segue. É impressionante acompanhar essa menina andando pelas dunas com um pote de leite na cabeça, tentando não derrubá-lo. Ela passa por tantas coisas nessa, que parece ser, longa viagem. Durante todo o caminho vai repetindo para si mesma, os conselhos: “Não estremeça, não esmoreça…”; “Não olhe, não vire, apenas siga o caminho…”; “… Nunca desista, menina.”.

Quando, finalmente, ela encontra o pai, algo realmente surpreendente acontece. O autor parece brincar com o leitor. Quando o narrador diz: “Ela tirou a tigela da cabeça, mas quando ia entregar ao pai…” – momento ápice da espera por algo que temos a impressão, desde o início, que vai acontecer – é preciso virar a página para saber… E essa virada de página marca a intencionalidade do autor em criar esse suspense e que pode ser explorada na leitura para as crianças. O que pensam as crianças nesse momento? Vale esticar um pouco mais o suspense nessa virada de página, afinal o que vai acontecer? “PLOFT!”. Se você ainda não leu, terá que ler para saber, não haverá spoiler1Spoiler tem origem no verbo spoil, que significa estragar, é um termo de origem inglesa. Spoiler é quando alguma fonte de informação, como um site, ou um amigo, revela informações sobre o conteúdo de algum livro, ou filme, sem que a pessoa tenha visto. Disponível no link, acesso em 28/08/18. nesse texto.

Mas a história não acaba aí, ainda há um final que é de grande sensibilidade. A menina fica desolada, mas a forma como seu pai reage também pode surpreender a muitos leitores. Ele é extremamente carinhoso e acolhedor com a pequena Penda e reconhece todo seu cuidado e amor nessa tarefa que poderia parecer tão simples. Suas palavras emocionam a todos nós, leitores!

Livro: Amigos da onça
Autor: Ernani Só
Ilustrações: Marilda Castanha
Editora: Companhia das Letrinhas

Este livro faz parte da Coleção “Histórias do tempo em que os bichos falavam”. As histórias de cada volume são organizadas sempre a partir de um tema comum, no caso desse livro, é a “onça” a protagonista de todas as narrativas.

São 11 histórias do folclore mundial, em que a protagonista, considerada a rainha das matas, se julga a mais forte e poderosa; ninguém se mete com ela, mas ela se mete com todo mundo e, quase sempre, não se dá bem. É considerada um tanto “burra” por muitos.

O texto “A noite da onça” (p. 9) faz uma apresentação do livro e compara as histórias com “brinquedos de montar”. O autor conta como foi pegando elementos de uma história e outra; como transformou personagens, utilizando como referência obras de autores clássicos de diferentes países. Vale a pena a leitura desse texto introdutório para saber mais sobre as histórias.

Um aspecto também interessante é o título da obra, “Amigos da onça”, você já ouviu essa expressão em algum lugar? Hoje ainda se utiliza, mas já não é tão comum. A expressão se refere a um personagem bem “sacana”, um amigo não tão amigo, dos quadrinhos brasileiros, criado pelo cartunista Péricles Maranhão em 1943. “Amigo da onça, a expressão” (p. 7) é o texto que abre o livro contando essa história e apresenta inclusive o personagem das tirinhas que eram pulicadas na Revista “O Cruzeiro”. Uma leitura que vale a pena porque traz elementos para uma boa conversa sobre o título e sobre as narrativas que compõem a obra, além de ampliar o nosso conhecimento sobre as histórias em quadrinhos brasileiras e sobre antigas expressões da nossa língua.

Também as ilustrações de Marilda Castanha são um destaque nessa obra. Os desenhos têm características muito particulares, lembrando elementos folclóricos e há alguns que perpassam várias páginas, como é o caso do desenho da onça que começa na guarda inicial e segue até a página 3, brincando com os limites das páginas. Essa ilustração, além de ser bonita, parece dar uma amplitude à protagonista digna de uma onça, e as crianças provavelmente irão gostar. As ilustrações merecem atenção também nos seus detalhes. Algumas vezes, elas são bem diferentes e bastante divertidas compondo com o texto e reforçando as características dessas histórias: situações inusitadas, travessuras, artimanhas.

São várias histórias envolvendo além da onça outros diferentes personagens. É um livro para se ler aos poucos, escolhendo as histórias de acordo com os desejos e vontades. Não é necessário seguir a sequência do Sumário. Às vezes, pode-se escolher reler alguma história que se tenha gostado muito, por exemplo. Todas as histórias pedem (e merecem) uma boa conversa ao final, por isso como não é possível se ter uma fogueira para ler em volta dela, vale considerar a possibilidade de ler em roda ou sentados de forma mais aconchegante que propicie a participação de todos. Pode ser no quintal ou em algum canto aconchegante, o importante é se divertir com as trapalhadas da onça e dos seus amigos. Boa leitura!

Nota

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    Spoiler tem origem no verbo spoil, que significa estragar, é um termo de origem inglesa. Spoiler é quando alguma fonte de informação, como um site, ou um amigo, revela informações sobre o conteúdo de algum livro, ou filme, sem que a pessoa tenha visto. Disponível no link, acesso em 28/08/18.

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  • Patrícia Diaz

    Diretora de Desenvolvimento Educacional da CE CEDAC, Patrícia Diaz formou-se em Pedagogia na Faculdade de Educação da USP e é mestranda em Didática, Teorias de Ensino e Práticas Escolares na mesma instituição. Foi professora e coordenadora pedagógica do Ensino Fundamental e iniciou sua atuação na Comunidade Educativa CEDAC em 1997 como formadora de professores. Antes de compor a diretoria da CE CEDAC, passou também pela coordenação pedagógica. Supervisiona todos os projetos que possuem como foco o desenvolvimento de práticas pedagógicas na formação de professores e coordenadores pedagógicos das diversas áreas e segmentos, além de continuar atuando como formadora.

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