O pequeno grande príncipe

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Receita para formar leitores

O pequeno príncipe

Ingredientes: um menino de cabelos cor de trigo, um aviador, uma flor, uma raposa, uma jiboia, um caderno, uma caixa, um carneiro, um deserto, um planeta, uma serpente…

Modo de fazer: coloque todos os ingredientes em um recipiente e misture a gosto; acrescente um narrador que saiba desenhar e contar histórias, além de entender um pouco de aviões e de crianças.
Mexa com delicadeza, até que a massa ganhe certa consistência. Prove. Não deve estar muito salgada nem muito doce, nem muito triste nem muito alegre. Prove sucessivas vezes até descobrir o ponto ideal.
Deixe que a massa adormeça por algumas horas. Aproveite esse tempo para pensar na vida, por exemplo.
Em seguida, coloque-a em forno aquecido e deixe que o aroma convide outras pessoas para a degustação.
Depois de assada, a massa deve resistir ao tempo, mantendo o mesmo frescor da primeira mordida, e, quem sabe, revelando um sabor ainda mais surpreendente.

O Pequeno Príncipe dormiu em minha estante, acompanhado por outras tantas massas, por mais de 35 anos. Ao relê-lo recentemente, estimulada pela comemoração do 70º aniversário do “Principesco”, acabei por reencontrar a leitora que fui na leitora que sou. E, para minha surpresa, deparei-me com uma sucessão de redescobertas que continuavam lá, à espreita, esperando pelo reencontro com o principezinho, que, ao contrário desta leitora, continuou criança.

Pude, então, me defrontar novamente com o gosto da massa, com o frescor da narrativa, com a inventividade que provoca no imaginário. Espantei-me também com a singeleza das ilustrações, sugestivas, nada óbvias, poéticas. Sintéticas. Atuais. Texto e ilustrações que respeitam o leitor, desafiando-o a ler nas entrelinhas. E quantas surpresas.

O pequeno príncipe ilus

Uma caixa fechada que guarda um carneiro adormecido.
Uma jiboia que rumina o elefante que engoliu.
Um planeta tão pequeno e ao mesmo tempo tão acolhedor, que possibilita assistir ao pôr do sol inúmeras vezes ao dia, bastando, para isso, que se reposicione a cadeira.
Uma flor e um animal que clamam por pertencimento.
Uma criança que acredita na importância dos vínculos, na responsabilidade, na generosidade, no respeito.
Um narrador que confronta as limitações de sua visão de mundo, com a liberdade poética do olhar infantil.

De certa maneira eu também fui vítima, como O Pequeno Príncipe, da maledicência intelectualizada que desprestigiou o livro, anos a fio, como o preferido das misses. Mas hoje, talvez por ironia, talvez por que o tempo seja mesmo implacável com todos aqueles que vivem fora das páginas dos livros, as misses já envelheceram, já se tornaram avós. Já o pequeno príncipe continua a mesma criança perseverante e curiosa.

Este livro é um bom exemplo do que é a vitalidade do texto literário: uma história atemporal, que não envelhece, que se mantém fresca e viva com o passar dos anos, que conversa de diferentes maneiras com leitores de diferentes gerações e culturas, e que continua a provocar sensações, estranhamentos, descobertas e reflexões em leitores de todas as idades.

70 anos depois, O Pequeno Príncipe ainda preserva a capacidade de silenciar o leitor, de fazê-lo olhar para além das páginas, imaginar o carneiro que dorme dentro da caixa, o elefante dentro da jiboia,

O pequeno príncipe jibóia/elefante

o desenho dentro do desenho, a história dentro da história. Um efeito reflexo e reflexivo em que texto e imagem se complementam e se questionam, conduzindo o leitor a procurar respostas dentro e fora do texto.

Apenas os textos literários conseguem ultrapassar as fronteiras do próprio enredo para conduzir o leitor até o território da linguagem, com suas diferentes cores e formas de dizer e de significar.

Apenas a arte, e nela o texto literário — e, sim, também O Pequeno Príncipe — permite um diálogo interior que ajuda a compreender-nos e a compreender melhor os outros. Seja em palavras, seja em imagens, a literatura proporciona esse inequívoco sentimento de pertencimento à condição humana. Não é à toa que todos se reconhecem de alguma maneira nesse livro, 70 anos depois.

Não sei quando voltarei a reler O Pequeno Príncipe. Mas sei que outros leitores o descobrirão. E não tenho dúvidas de que a história continuará a provocar o imaginário de seus novos leitores e convidá-los a questionar o sentido das relações e da existência, sem qualquer intenção de oferecer alguma lição, ou (auto)ajuda ou resolução definitiva; afinal, nessa história, o protagonista “morre no final” e não vive feliz para sempre.

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  • Márcia Leite

    Escritora, editora, educadora e mãe de três filhos, escreve para crianças e jovens há mais de 25 anos. Tem vários livros publicados e alguns premiados. Foi duas vezes finalista do prêmio Jabuti. Além de autora, atua na área educacional como formadora de professores na área de língua e literatura. É assessora na Escola Vera Cruz. Iniciou sua carreira como editora há poucos anos e, em 2011 abriu, com Leonardo Chianca, a Editora Pulo do Gato, especializada em livros para leitores em formação e formadores de leitores.

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3 respostas

  1. Sim a leitura transformar vidas…agrega conhecimento e experiência para passar em provas na escola e na vida. Melhora a fala a imaginação e a escrita.
    Muda as vezes a forma de viver e de pensar.

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