Onde vivem os heróis

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O mundo não é um lugar fácil e muito seguro, mas só Sendak tinha coragem de dizer isso às crianças.

Faz pouco mais de um mês (8 de maio de 2012) que perdemos um dos artistas de livros para crianças mais importantes do século XX. Maurice Sendak, 83 anos, sofreu um acidente vascular cerebral e foi para o lado de lá com seus grandes ídolos: Hans Christian Andersen, Randolph Caldecott, Herman Melville, Beatrix Potter e tantos outros. Por aqui, a literatura sente muito a sua falta, basta analisar o número de reportagens, artigos, comentários e conversas que surgiram e continuam aparecendo desde então. Algo inesgotável.

A admiração por Sendak vem fácil, em imagens que de tão expressivas chegam ao ponto de gerar discussões em qualquer roda de amigos. A partir do momento em que você começa a entender a própria história do autor, fica ainda mais fácil e prazeroso enxergar sua obra – é quase impossível separar o trabalho de sua própria vida, o que me parece bastante intenso.

Tirando o foco do autor e jogando no leitor, é verdade que os pais querem proteger os filhos de experiências ruins e que causam dores, as quais eles ainda não conhecem ou compreendem. Fato é que ninguém, por melhor mãe ou pai que seja, consegue tal feito. Mais do que isso, essa busca por momentos apenas alegres gera uma ansiedade tremenda na criança e no adulto. Há de se enfrentar o que está na nossa frente. Prevenir uma criança de sentir certas coisas é bloquear uma série de sensações. E os livros, como algo que prepara alguém justamente por oferecer liberdade, ajuda muito nesse processo.

Sendak fazendo careta
© James Keyser Getty Images

Não é que Sendak tinha uma boa explicação para matar as críticas no peito? Selvagem é a palavra certa. Não por que emprestou o melhor dos seus significados ao livro mais conhecido do autor, Where the wild things are, publicado em 2009 no Brasil como Onde vivem os monstros, pela Cosac Naify. Selvagem, daquele que vive só e que habita florestas longe da civilização, é também uma forma de definir o temperamento desse mestre da literatura infantil. Basta voltar um pouquinho no tempo, lá em 1928, quando nasceu Maurice Sendak.

De pais poloneses judeus (mais judeus do que poloneses, como gostava de dizer em entrevistas), Sendak cresceu no Brooklyn durante a Grande Depressão. E teve, como se imagina, uma infância bastante difícil, relembrada em perdas familiares, sofrimento, dificuldades financeiras e muitas doenças. Menino feito de medo e saúde fraca, passou boa parte do tempo só observando a rua através da janela do quarto. Era como se ali continuasse a Polônia de seus parentes. Nova York, essa sim cheia de promessas, só era alcançada por quem cruzasse a ponte para Manhattan. Nova América!

Mas foi justamente nesse ambiente que o livro já o tinha cativado como objeto – algo a ser contemplado, que se podia pegar, mexer, levar para o alto, cheirar – pensando agora, talvez o seu quase desprezo pelo e-book faça sentido. Aos 12 anos, conheceu o mundo fantástico de Walt Disney, no longa Fantasia. E tinha nos quadrinhos outras inspirações. O desenho, na forma mais pura, sempre o acompanhou. Colocava no papel aquilo que o cercava e puxava da vizinhança seus melhores personagens, meninos heróis e meninas heroínas que se espalhavam na rua como protagonistas perfeitos para suas cenas mentais, ainda que Mickey Mouse fosse um de seus preferidos.

Homossexual, julgava isso uma infelicidade para os pais, de quem ele sempre escondeu sua própria escolha sexual. Mas tentava colocar pra fora, sempre que podia, uma visão real da coisas. Daí a constatação: “o mundo não é um lugar seguro ou confortável, mas você pode encontrar-se através da coragem, astúcia e inteligência”, dizia. Iniciativa e ousadia, em vez de qualquer bondade, eram julgadas por Sendak como os melhores amigos nas horas difíceis.

Sendak foi um estudioso da arte de contar histórias. Alguém que mergulhou em si próprio para criar, na teoria e na prática, um novo jeito de enxergar os livros infantis. Porque para ele, esse rótulo já não significava muito. Gostava mesmo era de dizer que não escrevia para adultos ou crianças, escrevia e ponto. Escrevia e desenhava aquilo que sentia.

Um dos maiores escritores e ilustradores da literatura – veja o que foi o livro ilustrado a partir dele – , Sendak emprestou sua imaginação como se pudesse entrar na mente de uma criança. Trabalhou seus medos, angústias e verdades e sensações com outros tipos de mensagens. Falou daquilo que os pais não falavam, que os livros não mostravam, fez com que muitos encontrassem ali uma identificação profunda. Incertezas, algum tipo de terror interno e falas rápidas, sem muito pensar, fazem parte da vida de muitas crianças, não?

Desse modo, lançou, como quem abre um novo caminho, uma forma de contar histórias, com sua obra mais reconhecida e não menos polêmica. A história do garoto Max, publicada em 1963, foi alvo de críticas. Pais, professores e pensadores acreditavam que o livro era má influência. Quando não enxergado como algo temível, um pesadelo, ganhava o selo de prêmio por mau comportamento. Max, o protagonista, desobedece a mãe. Furioso, fecha os olhos e viaja de barco em seu imaginário, até dar numa terra de monstros. Ali ele conhece criaturas incríveis e ainda é nomeado por elas o rei da floresta. Max se completa.

Onde vivem os monstros

A história seria fácil se ele não tivesse de enfrentar verdades e julgamentos. Se não sentisse medo ou arrependimento. Se não tivesse de se separar de seus queridos e assustadores amigos para enfrentar águas bastante profundas até voltar para casa. Tudo contado com o mínimo de palavras e imagens que formam uma narrativa visual espetacular.

Dono de diferentes estilos, Sendak disse uma vez, em entrevista ao The New York Times, que “se você tem apenas um estilo você está fazendo o mesmo livro várias vezes, o que é, naturalmente, muito maçante.” Para se ter ideia, nem Sendak nem o seu trabalho estava sempre aborrecido. O homem era complexo, um verdadeiro interessado nos dilemas, cuja dor (muitas vezes negligenciada) e o heroísmo simples das crianças tentou relatar em seu trabalho – o que só um artista capaz de criar um clássico contemporâneo de várias gerações pode fazer.

Com Onde vivem os monstros, levou vários prêmios, entre eles o Caldecott Medal, em 1964, considerado o Prêmio Pulitzer de ilustração de livros infantis. Também viu a obra ser adaptada para o cinema, em 2009, nas mãos de Spike Jonze. E tem ainda um Andersen no currículo. Mas talvez, seu maior prêmio tenha sido a carta de um garoto oito anos, que após ler a história de Max escreveu: “Senhor Sendak, quanto custa para chegar onde as coisas selvagens estão? Se não for muito caro, eu e minha irmã gostaríamos de passar o verão lá.”

Por falar em carta, o site Letters of Note apresentou recentemente uma escrita referente à obra In the night kitchen, o livro de 1970 que também deu o que falar. A história de passa numa cozinha. O garoto Mickey está dormindo até que um barulho o incomoda. De repente, ele começa a flutuar e perde suas roupas pelo caminho, como numa imagem surreal. Cai num pote de massa de bolo, que na manhã seria preparada por três cozinheiros idênticos. A história se desenrola até que Mickey volta para a cama, mas guarda o sonho na memória. No entanto, a nudez em boa parte do livro foi alvo de comentários nos Estados Unidos, tratada como “moralmente problemática”.

Não só isso. Alguns pais e bibliotecários se sentiram na liberdade de desenhar uma fralda para o garoto em várias páginas. E teve ainda quem queimasse o livro e avisasse a editora de Sendak, Ursula Nordstrom, que (em tradução livre) respondeu assim:

5 de janeiro de 1972,

Querida (nome da pessoa),
Sua carta demorou para chegar até minha mesa, já que você enviou para outra divisão. Desculpe por não ter respondido antes.
Estou realmente aflita em ouvir que no ano de 1972 você tenha queimado uma cópia do livro. Estamos desapontados em saber que voce acha que não se trata de um livro para crianças. Eu entendo que a nudez de um garoto possa te incomodar. Mas certamente isso não incomoda as crianças. O senhor Sendak é um artista criativo, um gênio de verdade, e é também capaz de dialogar com as crianças diretamente. Crianças, pelo menos até os 12 ou 13 anos, são muito criativas também. Será que nós que ficamos parados entre o artista criativo e as crianças não deveríamos tomar mais cuidado em banir certos livros por causa dos nossos próprios preconceitos adultos e neuroses? Para mim, como editora e publisher de livros para crianças, essa é um dos maiores e mais difíceis tarefas.
Eu acho que as crianças vão sempre reagir maravilhadas com essa obra. São apenas os adultos que se sentem intimidados ou ameaçados por Sendak.

Em setembro de 2011, Sendak lançou seu último livro, Bumble Ardy, pela HarperCollins. O livro, que passou cinco semanas na lista dos mais vendidos para crianças do The New York Times, conta a história de um porco órfão que organiza uma festa de aniversário. Parece um roteiro até que tranquilo, mas novamente, desta vez no ano de 2011, Sendak ainda foi surpreendido pela crítica de alguns pais, incomodados com o fato de os pais do porco terem sido comidos – um horror!

Se ele se importava com isso? Nada. Resmungava como podia também. Voltava pro papel, escrevia e desenhava, para depois nos presentear com mais obras. Para alguns adultos, talvez duras demais. Para Sendak, um só pensamento: “Me convenci, e espero que eu esteja certo, que as crianças se afastam de você se você não conta a elas a verdade.” Criativo, talentoso e corajoso.

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  • Thaís Caramico

    Especializada em jornalismo para crianças, em 2009, elaborou o novo projeto editorial do "Estadinho", suplemento infantil do Estadão. Mudou-se para Londres, em 2011, para estudar Escrita para Crianças, na City University London. Desde então, trabalha como jornalista freelancer e é é sócia do Estúdio Voador.

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