Um dia, um cão

,

umdiaumcao.jpgUm dia, um cão
Autor e ilustrador: Gabrielle Vincent
Editora: Editora 34
Formato: 23,5 x 17 cm
Páginas: 64

O drama do abandono e a busca por outro lar vividos por um cão são a base da narrativa visual deste livro ilustrado que, além de ser sucesso no mundo todo e ter recebido o Sankei Children’s Books Publications Prize (1988, Japão), foi eleito um dos títulos Arrebatadores dos Destaques da Emília de 2013.

A cor vermelha aparece apenas na capa, no título e no logo da editora. De resto, todas as imagens são em preto e branco, um estilo da artista plástica Monique Martin, que criou o pseudônimo Gabrielle Vincent para apresentar seus livros ilustrados. No início de sua carreira não empregava cores e nesta obra, lançada em 1982, utiliza-se novamente desse recurso e “inova quebrando paradigmas em relação àquilo que costumamos pensar que as crianças gostam’”.1PEREIRA LEITE, Patrícia Bohrer; in Destaques Emilia 2013 – Análise do Júri dos Livros Arrebatadores.(p. 32).

Nascida em Bruxelas, em 1928, Monique Martin já era uma artista reconhecida quando começou a ilustrar livros em 1970. No Brasil, além de Um dia, Um Cão, tem publicados A Pequena Marionete (Editora 34, 2007) e dois volumes da série Ernesto e Celestina (Editora Salamandra, 2009).

A empatia com o olhar e expressão de animal carente é imediata, ao observarmos o cão na capa do livro. De costas, volta sua cabeça para o leitor como a convidá-lo para seguirem juntos pelo caminho que as linhas com um leve ponto de fuga indicam: uma estrada? Uma entrada no livro? Ao abrir o álbum vemos o animal no centro da página de rosto, andando em nossa direção, com a mancha de sua sombra ao lado. Essa mancha o acompanhará durante toda a narrativa, seja como sombra, reflexo ou gramado, dando liberdade de imaginação ao leitor.

umcao1
umcao2

Sem utilizar palavras, a autora constrói uma narrativa contundente, com muita ação, envolvendo o leitor desde o início. Sutilmente, indica que o cachorro é jogado de um automóvel, no meio de uma estrada deserta, mostrando o corpo do animal contorcido e dois braços posicionados para fora do veículo.

Segue a narrativa com o cão correndo atrás do carro. Vincent cria a tensão ao trabalhar com dois pontos de vista: num momento o automóvel está próximo e grande e o cão distante e pequeno; em seguida ocorre o contrário, o animal é trazido para perto do leitor, com tamanho maior, e o automóvel aparece ao fundo, bem pequeno. Nas imagens os traços rápidos sugerem velocidade, e no encadeamento das cenas se constrói a passagem do tempo até o cão perder o carro de vista. Aqui, as linhas congruentes da estrada, juntamente com o branco e o vazio, indicam seu afastamento.

umcao3

Depois de protagonizar um segundo conflito para a trama, provocando um grave acidente entre vários automóveis, o animal, perdido, uiva pedindo socorro, enquanto os traços livres no céu dão dramaticidade à cena, como se dialogassem com o som. Como não é atendido, o cão continua sua jornada por lugares desconhecidos, que as linhas sugerem serem campos, praias, desertos e o que mais o leitor puder imaginar. A grande quantidade e variedade de paisagens indicam a passagem do tempo e a ocorrência de outros acontecimentos até o desfecho da narrativa.

Embora se saiba que na França, onde a autora vivia, há campanhas para que as pessoas não abandonem seus animais ao sair de viagem nas férias de verão (cerca de 60.000 são enjeitados e muitos são deixados na beira da estrada todos os anos), a narrativa trata de um sentimento universal que toca de maneira particular a todos os leitores, pois o drama do abandono e da busca por algo perdido é peculiar à vida.

Como ressalta Cecilia Bajour, quando a imagem é a linguagem preponderante do livro ela nos leva “a novos modos de ler, novas coreografias para o olhar, outros modos de relacionar-se com o livro como objeto”.2BAJOUR, Cecilia. “Livros de imagens sem palavras (escritas): outros portos, outras âncoras”, no prelo, próxima publicação Caderno Emília. De fato, essa liberdade também é explorada pela autora no contraste do branco da página com o preto do desenho, diluído em vários tons, com manchas e linhas de diferentes intensidades, que dão força, movimento, definição e indefinição à história.

umcao4

Há momentos em que a autora explora linhas rápidas, que se sobrepõem e dão intensa velocidade ao cão. Outras vezes os traços superpostos trazem um congelamento da ação. Esse domínio gestual cria definições de movimentos do animal, mesmo quando a linha não delineia totalmente a forma.

umcao5
umcao6
umcao7
umcao8

A maestria do desenho leva à emoção e ao desejo de acompanhar as aventuras e desventuras deste cão, de cuja história o leitor acaba por sentir-se cúmplice.

Por fim, o título, a biografia e a apresentação da contracapa do livro funcionam como “âncora de referência linguística e factual”3Idem, ibidem., já que a presença destacada de imagens e a ausência de palavras escritas ocupam um lugar de destaque. De fato, em Um Dia, Um Cão o título delimita e orienta o leitor, acolhendo-o em uma aventura intensa, da qual ele é também autor e onde a dimensão do tempo transcorrido fica a seu critério.

Notas

  • 1
    PEREIRA LEITE, Patrícia Bohrer; in Destaques Emilia 2013 – Análise do Júri dos Livros Arrebatadores.(p. 32).
  • 2
    BAJOUR, Cecilia. “Livros de imagens sem palavras (escritas): outros portos, outras âncoras”, no prelo, próxima publicação Caderno Emília.
  • 3
    Idem, ibidem.

Compartilhe

Autores

Artigos Relacionados

Uma lição de humanidade

Maremoto

A realidade do fantástico

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *