Leitura, o remédio para a alma

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Algumas experiências não se perdem. Elas ecoam dentro de nós por muito tempo. Por mais que você nem pense naquilo, elas ficam lá escondidas em algum lugar da memória até que despertem a partir de uma conexão repentina.

A história da Sirlene foi uma dessas que ficou guardada comigo. Ela era uma detenta que fazia parte do clube de leitura que mediei na Penitenciária feminina de Santana, de 2011 a 2015. Numa das primeiras vezes que a vi, ela disse sem muitos rodeios: “Vim para cá grávida, acabo de entregar minha filha, com sete meses”. O olhar daquela mulher era forte, talvez ela não tivesse outra opção.

Ao relembrar essas palavras, sinto o mesmo gelo na espinha que me percorreu na época. Meu segundo filho, Henrique, tinha apenas três meses e eu não poderia pensar em nada mais doloroso, mais violento do que algo ou alguém me separando do meu bebê.

Mediar mensalmente um clube de leitura numa penitenciária é uma situação de deslocamento constante. Eu, mulher livre. Elas, mulheres privadas de liberdade. Eu, com ensino superior e especialização. Elas, professoras de outras detentas fazendo com que seus diplomas de ensino médio, às vezes uma faculdade iniciada, possam fazer a diferença para uma maioria que não tem fundamental completo. Eu olhando de frente para a equação da desigualdade, elas sentindo na pele o seu resultado. E a literatura lá, nos mediando, nos misturando, dando sentido a este encontro, este círculo de mulheres, por uma hora, todos os meses. Nossas histórias construindo novas narrativas, nos colocando lado a lado.

Não estou certa do tempo que se passou entre aquela conversa no clube de leitura do presídio e o reencontro. Foi num dia aparentemente comum. Eu estava trabalhando e, de repente, saltou na minha tela um pedido de amizade no Facebook, com o nome “Si Si”. Geralmente não aceito amizade sem sobrenome, ou de quem não tenho nenhum amigo em comum, mas neste dia entrei na página da pessoa. Tinha uma foto. Reconheci imediatamente. Era ela, afinal. Sirlene estava livre, conectada novamente à filha perdida, vivendo em liberdade, entrando nas redes sociais e acenando para mim.

Eu disse sim, sem pestanejar. Desde este dia acompanho a trajetória da mãe exemplar, da trabalhadora incansável e da estudante de farmácia dedicada, que passou no Enem quando ainda estava presa. Recebi um convite para a sua formatura e uma carta enviada às vésperas da colação de grau: “As escolhas e suas consequências são de nossa responsabilidade, mas as influências ajudam bastante. O clube de leitura teve um papel fundamental na minha jornada reclusa, me proporcionou condições de me desvencilhar temporariamente daquele lugar. Ler não é apenas um meio de passar o tempo, mas também um modo de resgatar a vida”.

Sirlene foi capaz de transformar oportunidade e palavras em ações. O clube de leitura lhe ofereceu uma brecha e ela se permitiu um salto, uma mudança de trajetória, uma possibilidade de se reinventar. As conversas em círculos, o fortalecimento de vínculos, a valorização da escuta e das potências individuais foram um sim para a ressignificação de uma vida.

Nesse mês de maio, em apoio ao Projeto Remição em Rede1O projeto “Remição em Rede” implementa clubes de leitura em penitenciárias do Estado de São Paulo e tem como base a “lei de remição de pena pela leitura” que prevê que cada livro lido mensalmente pelo detento pode diminuir sua pena em quatro dias. O preso tem a possibilidade de ler 12 livros por ano e conseguir até 48 dias de remição da penazzz. Esta rede que atualmente beneficia 200 detentos de 10 penitenciárias é composta pelo Grupo Mulheres do Brasil, a Fundação de Amparo ao Preso (FUNAP/Governo do Estado de São Paulo), a Jnana Consultoria e as Editoras Boitempo, Planeta, Record e Todavia., Sirlene subiu ao palco e contou sua história para mais de trezentas pessoas no Grupo Mulheres do Brasil. Disse que além de se formar, abriu sua própria farmácia na cidade de Santo André, em São Paulo. Enquanto era aplaudida de pé, com os mesmos olhos fortes de antes, mas agora com a voz potente, afirmou: “Continuem incentivando e implementando os clubes de leitura em penitenciárias. Isso mudou a minha vida e quero que novas mulheres tenham a mesma chance”.

Dizem que uma mulher empoderada sozinha é só uma mulher empoderada, mas mulheres empoderadas juntas são capazes de mudar o curso da História. Hoje, escrevendo esse texto, recebo uma mensagem alvissareira da Sirlene: “Jan, tive uma ideia. Vou fazer um cantinho de leitura na minha farmácia! Ao lado, colocarei uma placa: “Leitura, o remédio para a alma”.


Imagem: Fernando Vilela, Caderno de Artista.


Nota

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    O projeto “Remição em Rede” implementa clubes de leitura em penitenciárias do Estado de São Paulo e tem como base a “lei de remição de pena pela leitura” que prevê que cada livro lido mensalmente pelo detento pode diminuir sua pena em quatro dias. O preso tem a possibilidade de ler 12 livros por ano e conseguir até 48 dias de remição da penazzz. Esta rede que atualmente beneficia 200 detentos de 10 penitenciárias é composta pelo Grupo Mulheres do Brasil, a Fundação de Amparo ao Preso (FUNAP/Governo do Estado de São Paulo), a Jnana Consultoria e as Editoras Boitempo, Planeta, Record e Todavia.

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  • Janine Durand

    Janine Durand é educadora e fundadora da Jnana Consultoria. Responsável por implementar mais de 150 clubes de leitura pelo Brasil, é articuladora e voluntária do Programa Remição em Rede e articulista da Revista Emília.

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4 respostas

  1. Estou conhecendo esta revista hoje: gratidão. Que texto lindo e comovente que nos inspira a não perder a fé nas pessoas….

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