A poda selvagem realizada nos contos de fadas da coleção “Conta pra Mim”, produção da Secretaria de Alfabetização, ligada ao MEC, parece gêmea daquela operada por Fenelon. Ele também achou que seria excelente ideia apropriar-se do repertório milenar, modifica-lo a seu modo, e utiliza-lo como exemplo moral. Ele também desvirtuou este patrimônio cultural, eliminando bruxas, fadas, qualquer aceno ao amor, ao erotismo e à violência. Ele também era sacerdote, teólogo e pedagogo como o nosso atual Ministro da Educação. Mas François Fenelon foi preceptor do Duque de Borgonha, neto de Luís XIV, cargo para o qual havia sido nomeado em 1689. E nós estamos em pleno século XXI!
João e Maria foram sim, ao contrário do que consta na nova coleção, levados ao bosque pelos pais que, em plena miséria, não tinham como alimentá-los. Era prática recorrente na Idade Média em períodos de fome. No Brasil nunca tivemos Idade Média, mas sempre tivemos fome e sempre tivemos crianças rondando nos bosques urbanos. Para essas crianças pode ser muito proveitoso saber que João e Maria estiveram na mesma situação, e conseguiram achar uma saída. Bem mais do que ler que uma boa mãe lhes ensinou o truque das pedras, para que pudessem colher flores.
Não li todos os contos de fadas da coleção “Conta pra Mim”, e me pergunto se a bruxa má, com sua casa de doces e sua disposição de comer as crianças foi eliminada. Seria uma perda, porque é personagem simbólica que ajuda os pequenos a administrar, no imaginário, o desejo canibal de tantos adultos.
As 130 crianças sequestradas desapareceram do conto do flautista de Hamelin, não por sedução da flauta e, sobretudo, não por vingança, mas por corte ideológico. O conto, sem as crianças, torna-se apenas um conto de ratos. Crianças desaparecem diariamente no Brasil, atraídas por dinheiro, por promessas ou até por comida. A versão original aconselha os pequenos a não ouvir essas falsas músicas.
Vi na coleção, que Chapeuzinho Vermelho, sempre morena, foi oxigenada pela ilustradora, e que o Lobo Mau, não é morto pelo caçador. Apesar de ter se demonstrado tão esperto ao longo da narrativa, tropeça de repente, cai no rio e se afoga. É a segunda poda! Na história original não havia caçador nenhum, o Lobo comia a Avô e Chapeuzinho, sem que houvesse volta. Mas as crianças brasileiras às quais a coleção é endereçada, nunca ouviram um tiro, nunca tiveram que ir para o banheiro e se deitar no chão durante um tiroteio, nunca viram traficantes ou policiais armados, e precisam ser protegidas da imagem do caçador e da sua violência.
Quem empunhou serrote e tesouras não é, evidentemente, especialista em literatura infantil. Fosse, teria lido o trabalho de Freud sobre contos de fadas, o de Jung e o das escolas de ambos. Saberia que a linguagem simbólica tem alto poder estruturante, que os símbolos não precisam ser decodificados, simplesmente deslizam para o inconsciente adaptando-se às necessidades do pequeno leitor e ajudando a formular perguntas ou a fornecer respostas.
Quem orquestrou este insulto a narrativas milenares, desconhece que elas se mantêm vivas através do tempo e da geografia porque tem infinitas portas, permitindo que cada leitor – ou ouvinte – abra a sua e se enriqueça.
Sherazade, assim como os dez jovens nobres do “Decameron”, de Boccaccio, contavam histórias para vencer a morte. Deveriam ter servido de exemplo neste período em que estamos frente a frente com ela. Mas não. As narrativas do “Conta pra Mim”, dessangradas, despidas de seus símbolos, não combatem coisa alguma e conta-las perdeu qualquer valor.
Quando o moralismo inventa suas próprias histórias, revela-se rasteiro e óbvio. Então recorre a histórias bem plantadas no imaginário universal, e as adapta. Mas ao adaptá-las as desconstrói. E ao abrir a pata só encontra um punhado de moscas. 1Texto originalmente publicado no blog Marina Colasanti, em 8 de outubro de 2020.
Imagem: Ilustração de Santiago Régis.
Nota
- 1Texto originalmente publicado no blog Marina Colasanti, em 8 de outubro de 2020.